segunda-feira, 10 de julho de 2017

Micro-recorte, buracos e como pensar no contexto

Eu dei uma pincelada na parte do "micro-recorte" (não usei o termo antes, mas disse o que penso dele) sem querer em um post de quatro anos atrás sobre a importância da especificidade do recorte e, apesar do que eu vou falar hoje parecer contradizer aquele post em um ou dois pontos, se você prestar bem a atenção vai ver que ele só reitera esses pontos. Pra não gerar confusão, vou dar exemplos atuais e contextualizar com alguns de períodos do passado.

Micro-recorte é um termo que eu meio que inventei, então não o levem tão à sério. É mais pra dar um termo pra uma situação específica sem ter que descrevê-la toda vez que for falar dela. Basicamente é aquele recorte que é tão específico, tão minucioso, tão focado em achados de um único ponto que basicamente não tem como dar errado: Você entra numa máquina do tempo e as pessoas olham pra você e dizem "olha só, mais um de nossos contemporâneos".

Claro que isso nunca aconteceria de fato porque SEMPRE existem buracos que tapamos com o nosso momento atual. Por exemplo um reenactment da Segunda Guerra Mundial que os buracos são tão minúsculos que não seriam tão estranhados, mas o sotaque de um alemão de hoje que é diferente do de 70 anos atrás e as gírias usadas pelos pracinhas brasileiros talvez não sejam tão fáceis de reproduzir. E olha que tem gente daquela época ainda viva e que provavelmente não lembra o gosto do pão que comia em 1944, mesmo que saiba a receita de cor.

Quanto mais longe você vai no tempo, maiores são os buracos e mais notáveis eles são pra quem está vendo. Isso tem a ver com o corte das roupas, cores usadas em escudos, proporções de peças de armadura em relação ao corpo... Talvez o que seja óbvio para nós fosse ligeiramente diferente para eles.

Então, voltando ao micro-recorte, nós escolhemos um ponto no mapa e o recriamos. Mas não digo uma região, uma ilha, uma vila ou uma casa. Eu digo uma única pessoa. Aí diminuímos os buracos. Por exemplo o Homem de Bocksten, um sueco do século XIV cujo corpo foi preservado em um pântano com suas roupas. Nesse caso nós temos quase que em perfeito estado de conservação suas roupas e alguns de seus acessórios. Vestindo roupas feitas da mesma maneira e usando réplicas dos outros objetos, que não são tão difíceis de se reproduzir hoje em dia, você com certeza vai se parecer com um homem do século XIV, mesmo que com alguns buracos.

Outros exemplos desses casos são dos montes funerários de Vendel e Valsgärde, por exemplo, embora mais ligado aos equipamentos bélicos. Ou o achado de Gjermundbu, com direito a Vários aparatos reunidos num mesmo local. Escolha sua época e estou certo que vai achar algo.

Mas daí surge sempre o problema de como tampar os buracos que às vezes são maiores do que a informação obtida. A solução mais fácil, mas nem sempre a mais correta, é expandir de um corpo pra casa em que ele habita. Não literalmente, isso é uma analogia, claro.

E é aí que os buracos viram problemas.

Exemplo: eu quero reconstruir um chefe sueco do século VII. Busco uma referência em Valsgärde e remonto tudo que há dentro da cova nº6. Daí falta alguma peça, eu procuro em uma tumba vizinha do mesmo complexo.

Pronto, tenho elmo, escudo, lança, machado, espada, sax, uma pouch, fivela de cinto e por aí vai. E aí eu procuro uma túnica e não encontro. Mas quero me localizar APENAS em Valsgärde, para não cometer gafes de autenticidade. E não tem túnica nas covas mais régias. "Mas tem uma túnica logo ali", a menos de, sei lá, 50 metros dos montes funerários. Suponha que o homem de Bernuthsfeld estivesse num rolê pela Suécia e não na Saxônia quando morreu. Bom, aí você encontrou uma túnica do mesmo período na mesma região! Vou tapar o buraco com ela, claro.

NÃO!

Esse é o problema do micro-recorte. O buraco que você tenta tampar da maneira mais lógica de acordo com o que você tem na área. E isso daria uma incoerência diabólica.

Pra quem não conhece, a túnica de Bernuthsfeld é uma túnica do final do século VII ou começo do VIII que é exatamente um bando de retalhos de tecidos, qualidades, cores, formatos diferentes. É tipo um patchwork que deu muito errado. Mas alguém vestia. Só que esse alguém não era um chefe do período Vendel, com absofuckingluta certeza. Talvez ele pedisse esmola pro escravo de um dos subalternos de um chefe do período Vendel.

"Mas é a única túnica que tem na região e ela existe" (supondo que o cara estivesse na Suécia, porque não estava, só lembrando). Então essa é a política. Só tampa o buraco com algo de fora se não tiver esse algo dentro.

Isso é errado, porque seria a mesma coisa que, por exemplo, você soterrar um presídio hoje e daqui a mil anos escavá-lo e afirmar que os presos tinham acesso a armas, celulares, chaves e tudo o mais só porque isso foi encontrado no complexo. Tá bom que em alguns casos a coisa funciona assim, mas pense num presídio que segue a teoria.

Isso significa que não é porque está num lugar e na época certa que tudo caminha junto. E muitas vezes é melhor tapar o buraco com uma coisa do outro lado da montanha, do lago, do mar, do que procurar um equivalente local.

Por que isso? Exemplo que eu sempre digo pra todo recriador: um rei suéco de qualquer época tem MUITO mais em comum com um rei Anglo-Saxão do mesmo período do que com seus próprios súditos.

Querem exemplos? Vendel e Sutton Hoo. As semelhanças entre esses dois contextos é muito maior do que Sutton Hoo e Butler's Field. A Casa de Bernadotte tem muito mais em comum com a casa de Windsor do que com algum Lindenberg ou Claudiusson, pra realçar que isso ainda é regra hoje, mesmo a desigualdade social na Suécia e inglaterra serem bem menores do que era no século retrasado. E pra mostrar que nós não estamos tão alheios a isso, um cara rico estilo Silvio Santos ou Eike Batista (antes da falência e prisão) estaria muito mais próximo em termos de cultura material ou modo de vida do Donald Trump do que estaria de mim ou de você, leitor.

O micro-recorte só funciona quando ele tem pouco buraco. Se não a chance de fazer uma bagunça se torna ainda maior. Ver um sujeito pobre que se ferra pra pagar as contas no final do mês e que ainda assim deve o dobro do que recebe com uma Ferrari na garagem é no mínimo estranho. É como ver o homem de Bernuthsfeld carregando uma espada cheia de granadas e ouro.

O oposto é válido. Um rei não se vestiria com trapos. Se ele tem um elmo coberto de prata e pressblech, ele não vai usar uma fivela de ferro sem adornos. Se ele tem uma espada cheia de inlays, overlays e minhamãelays nas guardas e pomo, ele não vai usar sapatos mal-feitos.

Eeeeeentão, antes de definir um local específico, defina a época e a classe social do seu recorte. Porque eu vejo gente aqui e lá fora que seleciona um sítio arqueológico e se tranca nele. Veja bem, não é um problema dependendo do recorte, mas de novo, quanto mais pra trás no tempo, maiores os buracos. E alguns tipos de solo são excelentes pra nos prover com alguns tipos de material arqueológico e outros, outros tipos.

E vamos nos lembrar que as pessoas se moviam. O cemitério de Butler's Field, por exemplo, estava cheio de âmbar do Báltico. E obviamente o Rio Tâmisa não é o Mar Báltico. Ele chegou ali como? Viajando! A lamelar de Birka não foi feita em Birka. Ela chegou lá de algum jeito. Viajando! Sabe a Era Vendel? O comecinho dela também é chamada de "Era das Migrações". Fico me perguntando diariamente a razão pra isso, porque nem consigo imaginar.
Então, especialmente em contextos de maior mobilidade de pessoal, como Birka, Hedeby, Kaupang, York e esses só pra falar alguns dos mais puts-puts-badalação, é ainda mais "permissível" prum recriador pegar coisas de áreas mais distantes, porque é onde você tinha a maior confluência de gente.

Em um paralelo com um reenactment do período do império Romano, é como pegar a própria cidade de Roma como base. Ao retratar um comerciante romano que contrata mercenários pra defesa você praticamente abre espaço pra TUDO que existia no período do seu recorte, sem cair no risco de estar misturando de mais.

É diferente de eu querer ser um chefe em Trondheim em pleno século IX. Talvez tudo que eu tenha seja um escudo com uma bossa bem característica dessa época, uma espada de um gume com um hilt bem pobre e daí eu invisto na túnica ou calça. Porque é um lugar distante e com um acesso chato, a moda ia estar mais restrita.

Assim como Trondheim na Era Viking, você tem Visby um pouco antes do período de Kalmar. O que sabemos é que eles tinham um grande ajuntadão de armaduras ultrapassadas tecnologicamente, mesmo que algumas possuíssem insígneas de nobreza. Porque alguns tinham mais acesso do que outros ao que estava em voga no período, então muita gente reciclava ou continuava usando.

O elmo de Gjermundbu por exemplo data provavelmente do século IX, mesmo tendo sido aposentado no século X. E tinha um estilo similar a outros de cem, duzentos ou trezentos anos antes. As armaduras de Visby datam do final do XIII ou começo do XIV, tendo sido enterradas em 1361.

Então depois de cecidir sua classe social e período, você escolhe o local. Porque você pode olhar o que te agrada mais de acordo com o material arqueológico disponível e com o contexto que você quer chegar.

E expanda o recorte para que ele seja mais específico, por mais paradoxal que isso pareça. Independente da época, as condições do seu nascimento valem mais do que o lugar onde você nasce na hora de determinar como você vai se vestir, se portar ou ter acesso (estou falando de reenactment, please).

A região é importante, mas dependendo do recorte ela precisa ganhar outras proporções. "Jutlândia" é um recorte melhor do que "Tjele" ou "Viborg" para um huscarl juto. "Kattegat" é ainda maior em área, mas pra um ferreiro itinerante, como é um dos meus recortes, é uma área de atuação mais condizente. "Mar Báltico", ainda que absurdamente colossal se for parar pra pensar, ainda é mais apropriado pra um comerciante de iguarias do que apenas "Birka". "Mar do Norte" é ainda mais amplo, mas se você for uma espécie de rei do mar ou mesmo saqueador danês do mycel heathen here, é a sua área de atuação, você vai acabar tendo influências escandinavas, continentais e insulares no recorte. E isso vai ser positivo.

Percebem? Você nunca representaria bem nenhuma das esferas sociais acima se estivesse confinado a um só assentamento, porque tirando escravos, todos se moviam muito no período. E mesmo os escravos tinham uma origem liongínqua na maioria das vezes e acabavam reproduzindo costumes de seus povos mesmo em pequenas coisas como penteados e pequenos enfeites em suas coisas.

Então pensem em contexto, pensem em quem você quer retratar e não em um local. Afinal, não é porque você é uma mulher e vive com seu filho, seu marido e sua avó na mesma casa que você vai usar bolsa, tênis com luzes no calcanhar, terno e meias geriátricas (pode até rolar, mas naquela época isso seria encarado dum jeito pior do que geralmente é hoje).

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