sábado, 27 de novembro de 2021

Como montar um kit - Parte 3: Armas da Era Viking

Ahá! Eu disse no final do meu último post que levaria mais dois anos pra postar alguma coisa e voilá, meus caros, amanhã faz exatamente um ano de tal postagem.

Ontem, dia 26 de novembro de 2021, eu tive uma conversa ao vivo no Instagram do NEVE (Núcleo de Estudos Vikings e Escandinados da UFPB) e um texto daqui foi citado, daí abri pra reler e deu vontade de escrever essa terceira parte dessa série.

Antes de mais nada, queria deixar um registro pra posteridade: Vinícius do futuro, você era um inútil. Depois de dois anos de pandemia com toda a liberdade de sentar na frente de um computador e escrever, você não o fez. Shame on you!

Enfim, hoje vamos falar sobre armas usadas na Era Viking. Lembrando que isso é pra quem está começando a montar um kit e ainda não sabe exatamente onde torrar desnecessariamente todo o seu dinheiro procurar os objetos perfeitos pro seu recorte.

Listinha básica de sempre:

Lanças
Machados
Facas de guerra
Espadas
Arcos e flechas

Agora, antes de falar item por item, mais ou menos como eu fiz nas duas postagens anteriores, queria lembrar que equipamento bélico muitas vezes carrega uma identidade cultural muito marcante e cultura muda de uma geração pra outra, mesmo quando falamos de mil anos atrás. Então mantenha em mente que muitas coisas estão fortemente atreladas a uma região e período específicos e em termos de décadas algo novo surgia e saía de moda. Além de achados que por pouco categorizam tipos. Então aqui vale a pena dar uma estudadinha por conta.

Outra coisa aqui é que vou usar bastante a tipologia do Jan Petersen. Tem que lembrar que ele publicou essas coisas faz mais de 100 anos e se baseou apenas no material encontrado na Noruega, mas ainda assim é a minha tipologia predileta, é bastante atual, bastante completa (embora em alguns casos seja redundante) e é aplicável pra muitos achados de outros lugares. Claro, tô falando de Era Viking, não me venham com Oakeshott ou Behmer aqui.

Outro cara que vale a pena é o Alfred Geibig, total nerd. Mas o preciosismo exagerado deixa o trabalho dele meio redundante, então leia com moderação. Outro lance é que diferente da Noruega do Petersen, que foi unificada ainda no primeiro milênio e se manteve Noruega desde então, o Geibig publicou o livro dele na Alemanha no começo da década de 90. Se você não é cringe como eu, em 89 caiu o muro de Berlim, o que significa que toda a pesquisa do Geibig foi feita na parte ocidental de um país dividido ao meio, então ele teve uma limitação bem grande em relação ao acesso aos materiais, o que afeta o trabalho pra quem lê 30 anos depois. Ah, é, tá em alemão.

Quem quiser, tem o Wheeler também, mas sinceramente acho o trabalho dele muito reducionista.

Se tiver muito interesse em um recorte russo, tem sempre o Kirpshnikov, que foi o arqueólogo soviético mais prolífico que eu conheço. Mas boa sorte com a língua russa aí, jovem.

Tem também outro carinha que talvez vocês encontrem se forem pesquisar e que vale a pena olhar é o Oluf Rygh. Bastante velho, ele publicou numa época em que o Brasil nem era república ainda. E eu tô falando da Velha. Mas o trabalho dele é referenciado até hoje. Ele não tem exatamente uma tipologia, mas é como se fosse. Basicamente foi um dos primeiros arqueólogos noruegueses a encher o livro com ibagens e cada imagem era numerada, então até hoje a turma se referencia às imagens dos achados que ele publicou.

Além desses clássicos, existem autores contemporâneos que trabalham com divulgação desse tipo de material, como o Vegard Vike e o David Stribrny. Um através do Twitter (e também ajuda em livros, como o Vikinger i Krig pelo Kim Hjardar) e o outro com o site bem legal que basicamente mostra a pesquisa dele em diversos temas voltados ao público reenactor. Sem mencionar o Roland Warzecha, que é primariamente um artista marcial, mas também ilustrador e que documenta peças originais de diversos períodos, na maioria das vezes espadas e acessórios destas e tem a página no Patreon pelo nome de Dimicator.

E aproveitando que é sobre material militar, eu não recomendo as séries da Osprey. Eles cometem alguns erros bem grandes, mesmo que pontuais, sem falar que diferente do Petersão, algumas publicações tem cerca de 20 anos e envelheceram bem mal.

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Lanças: Ah, a princesa das armas, não? Lanças aparecem nesse período numa grande variedade de tamanhos e formas. Elas mudam com o tempo, de acordo com a moda e as exigências militares de cada contexto, mas ainda é uma ponta numa vara.

Muitas lanças são implementos de caça usados em batalha e sinceramente gente podia (e pode, mas não façam isso) ser furada com a mesma facilidade que um alce, então não cabe tanto aprimoramento, mas às vezes surgem coisas mais específicas.

Aqui vai uma imagem da tipocronologia do Petersen roubada na caruda do Twitter do Vegard Vike (eu amo um arqueólogo). Se não entender, vem comigo que eu explico.

Tipocronologia Petersen para lanças.

Assim, a tipologia do Petersen é uma tipocronologia porque os tipos estão organizados por data de surgimento, mas como não tinha tanta tecnologia na época algumas datas não batem com descobertas mais recentes, então fica de olho. De qualquer modo, o que o Vike postou é meio que já corrigido.

As duas áreas cinzas são de "famílias" de formato. No caso com forma "de folha" ou forma de "losango". Reparem que tem a cronologia do lado esquerdo, então as linhas horizontais acompanham essas datas, ou seja, por volta do ano mil a forma de "folha" sai de moda, da mesma forma que a forma de losango só começa a ganhar relevância depois do ano 800, mais ou menos. Isso não é uma regra, mas uma média. E como dá pra notar, tem tipos que não pertencem a nenhum desses grupos maiores.

Podem ver que cada tipo tem uma barra vertical? Essas barras indicam de quando a quando o tipo era produzido/usado e o tracejado indica que alguns achados não tem uma datação tão precisa. O tipo E, por exemplo, surge por volta de 820-30 e se mantem na moda até pelo menos 920, mas alguns achados de lanças de tipo E podem ser datados ao ano 800, mais ou menos, enquanto outros até 950.

Às vezes é bem fácil datar um achado arqueológico, seja por um Carbono 14 numa pessoa importante, seja por dendrocronologia, seja por uma moedinha marota enterrada com o objeto. Às vezes uma criança está brincando num lago, encontra uma espada velha e diz que pode ser rei da Inglaterra. Então você pode julgar a data por estratigrafia (você olha a cor da terra ali e fala "hmm... marrom século X, certeza". Com um pouco mais de ciência envolvida) ou por comparação do que mais foi encontrado junto. Ou ainda porque se você sabe que um determinado estilo só existe num período e aquela coisa solitária numa pedra é daquele estilo, logo, ela data de um determinado período (sem falar de eventuais falsificações).

Lanças da tipologia Petersen e seus formatos. Também retiradas do Twitter do V. Vike.

Bom, tem mais tipos de lança da época que o tio Pete não falou muito, ou que falou e que não está na listinha alí. Só pra colocar mais um, tem o tipo L (você notou que faltava a letra L?). Difícil achar uma fotenha aqui, mas basicamente são como os Angon francos, que são usados como os pila (singular: pilum) romanos. A diferença é que enquanto esses francos tem um soquete, as lanças tipo L tem uma espiga, como uma grande e malvada ponta de flecha. Algumas são bem como a imagem abaixo e datam do século 9 e a partir do ano 900 elas tem a ponta mais triangular e menos "rebarba".

Angon franco, séculos 5-8

"Ah, legal, tenho uma lança, não preciso de escudo então! Uhú!" Erm... NÃO. Vai embaixo imagens de lanceiros no período. Além de usar com duas mãos, elas podiam ser usadas com uma mão só e quase sempre você ia querer um escudo, nem que fosse preso na sua nuca. Safety first!
Reprodução dos entalhes da pedra de Aberlemno II, Escócia, c. 750-800

New York (Originalmente feito na França), Pierpont Morgan 333. fol.51r. c. 1000-1025 AD

Saltério de Stuttgart, século 9

E vocês podem me perguntar das asinhas nos soquetes das lanças. Não, aquilo ali não servia pra puxar escudo, parem de falar isso. Se fossem feitas pra isso, o ângulo deveria ser ao contrário justamente pra não escorregar na puxada. Até existem umas curvadas pra trás, mas são tão poucas e tão regionalmente confinadas à Finlândia, que não conta, além de provavelmente não ser pra isso, já que são decoradas ao extremo.

Então pra que serve? Pra impedir que a ponta afunde de mais no alvo. É um implemento de caça que funciona contra gente. Inclusive é engraçado (escolha errada de palavra?) que a imagem acima é uma caça e não tem, a de baixo é numa pessoa e tem. Enfim. Serve pra impedir que sua lança atravesse a vítima e chegue loucaça de ácido em você, tipo aquela cena no filme Tróia com o Brédipíti. A cena não é o Brédipiti, o filme é que é. De todo modo, isso só começa a surgir de maneira significativa no século 9 em diante.

Codex Aureus Epternacensis f.78, Alemanha, 1040AD

"Ok, sei o basicão sobre lanças, e agora? Como uso no reenactment?"

Escolhe um tipo dentro daquela cronologia ali em cima, que case com o seu recorte histórico. Existem lanças mais ou menos regionais, mas eu recomendo algum daqueles dois grupos em cinza, as em forma de folha ou em forma de losango. Cabem pra todo mundo, não passam por erradas, mas respeita a época.

Pra evitar erro, faz sem as asinhas, ok? E coloca num cabo de mais ou menos 1,8m. Arruma uns bastões de uns 2,5-3cm de diâmetro. menos que isso vai quebrar, mais que isso é ruim de segurar. Se você tiver certeza de qual objeto vai fazer, DEPOIS DE PESQUISAR MAIS DO QUE ESSE BLOG, faz o cabo mais longo ou mais curto. mas não me faz uma pica (não é linguagem feia, é o nome da arma mesmo) de 3m de altura, faz favor.

E não enfeita o pavão, ele já é enfeitado o bastante. Muitas lanças originais eram extremamente bem decoradas, vou até deixar uma tipo E aqui embaixo pra vocês terem uma noção. Outras tem padrões caldeados, tatuagem com o nome da ex... enfim. Mas isso é pra quem sabe o que está fazendo. E isso é caro, indica que o seu recorte é de alguém rico, dói no seu bolso, é destruído facilmente se for usada em combates de armas cegas e amarra seu recorte. Então, evita, a menos que esteja bem seguro do que quer.

Ponteira encontrada em Austers, Gotland, Suécia. Tem 60cm de pura maldade. Séc 10
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Machados: Machados são legais. Quem nunca usou a expressão "quero dar amor aos meus amigos com um machado"? Você não? Ok...

As pessoas tem esse fetiche por vikings com machados. Os machados tem uma variação bastante grande dentro do período e existem estilos regionais bem específicos. Tanto pros machados usados como armas, como pros que eram ferramentas. Inclusive muitos machados claramente nunca foram usados e eram síbolo de status e poder, da mesma forma que lanças e espadas. Aliás, toda arma é um símbolo de poder. Ela diz quase literalmente "eu posso acabar com a tua vida, mermão".

De novo, tipologiazinha marota.


Agora vocês já sabem ler isso, tem também a definição escrita ali embaixo. por "Eastern", não querem dizer asiáticos, mas tipos comuns na Suécia, Finlândia, Letônia, Lituânia e Estônia, até um pouco na Russia e Polônia.

Existem outros tantos estilos de machados, alguns mais voltados pro uso doméstico, outros pro uso como armamento.

Quanto a machados de batalha especificamente, os machados largos de tipo M, ou alguns transicionais como o tipo L em teoria são os mais adequados, mas vejam esse pingentinho de Klahammar, na suécia, mostrando um tipo C com um cabo aparentemente longo (cuidado com proporções em arte estilizada, nunca levem isso a sério), usado por alguém que aparentemente é um guerreiro, já que usa espadinha e tal.

Pingente encontrado em Klahammar, Suécia. Provavelmente século 9

Agora, um machado de uma só mão poderia ter cabos de uma variedade de tamanhos, mas num geral, quanto mais longo, mais lento e menos eficiente como armamento. o mesmo vale para cabeças de machado. Quanto mais pesadas, menos adequadas como armas. na verdade machados de batalha são surpreendentemente leves e delicados, ainda que pra quem seja leigo isso possa parecer paradoxal.

Pensa que quando você corta lenha, o alvo está parado, não vai fugir, revidar e espera pacientemente você tomar um fôlego entre uma machadada e outra ou passar aquele lencinho pra tirar o suor da testa. Numa batalha ou mesmo um duelo ou um simples "assassinato pouco digno", nada do que é válido pra lenha se aplica.

Cabeças de machados enormes como os M3 (que são usados com ambas as mãos) ainda assim pesam menos de 1kg, na verdade beiram o 0,5kg na maioria das vezes. Pensa no resto. Especialmente um favorito pessoal como os tipo A, que podem chegar a menos de 200g.

Um adendo aos formatos está muitas vezes nas bochechas do machado, a parte que circunda o olhal da cabeça. Entre os machados escandinavos existe uma tendência à partir do século 9 de ter protuberâncias pontiagudas nas laterais, tanto na parte superior quanto inferior das bochechas. Isso não acontece por exemplo em machados de origem anglo-saxônica, por exemplo, que tem um acabamento mais arredondado/reto. Isso gera uma diferença regional enquanto o restante continua quase igual.

Apesar de muitos estilos locais, os tipo M ganham bastante popularidade no século 11 e se mantem mais ou menos iguais por alguns séculos após o fim da era viking.

Bom, qual tipo de machado um iniciante deve usar? Pois é, olha a cronologia. E tenta ver se existe algo parecido na sua região. Pra Escandinávia, isso serve muito bem. Pra machados britânicos, checa o Wheeler que ele tem mais coisa que o Petersen, afinal o corpo de prova dele é britânico.

Monta num cabo de uns 60-70cm de quiser um machado de uma mão. Ou até um pouco mais caso se sinta confortável. Pra um machado de duas mãos... Bom, existe um post fenomenal no site do David Stribrny sobre isso, mas de resumo máximo, algo entre 90cm e 1,2m. preferencialmente algo por volta de 95cm-1m. Sério. Além de achados arqueológicos em excelentes condições de cabos preservados em machados largos, vou deixar uma imagem da nossa tapeçaria predileta mostrando uma proporção. Não levem proporções de ilustrações do período à sério sempre, maaaaaaaas, quando tem respaldo arqueológico, pode.

Tapeçaria de você já deveria saber qual, século 11


Agora, existem imagens de cabos mais longos? Existem. Na própria tapeçaria tem, mas tem bastante discussão sobre isso. Inclusive um indicador de gente importante sendo retratada. E tem uma plaquinha bizantina que data do final do século 10 ou começo do 11, que hoje está em Colônia na Alemanha, mostrando um cara que possivelmente fazia parte da guarda varegue com um machado quase tão alto quanto ele e uma espada. Mas ninguém sugere que a espada seja da mesma altura que o cara ou que a mão esquerda dele tocaria no chão quando ele está ereto, então, segura as pregas.

Plaquinha bizantina feita em marfim.

Do mais, existe uma infinidade de machados decorados, vazados, até um feito de bronze fundido com um insert de aço no gume... Evita. A menos que saiba o que está fazendo. Evita.

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Facas de guerra: Assunto polêmico esse. Eu tenho uma série de vídeos no meu canal do Youtube falando sobre características do seax e explicando por qual motivo as facas de guerra da era viking não são seaxes. Procura lá "Seax" e "Hjorvardhr" que você acha. "Ain, deixa o link aí!" Não. Prefiro gastar mais tempo e letras digitando que não do que facilitar a preguiça. Se você não é capaz de procurar uma coisa no Youtube, você não é digno e não pode levantar o martelo do Thor da Marvel.

Em suma, o seax deixa de ser usado pelos escandinavos na virada do período Vendel para o período Viking e ou se transforma em outras armas ou é substituído por facas diferentes. O seax da forma que o pessoal está habituado (aquele, com dorso quebrado) é um produto quase que exclusivamente anglo-saxão ou carolíngio. Mas devido à escassez de material arqueológico franco do período (por proibições previstas em lei feitas pelos reis e imperadores francos da época), "no lo sabemos". Mas às vezes surgem umas, inclusive a tal faca de guerra do Carlos Magno que tem tudo pra ser anglo-saxônica. E tem desenho.

Olha o seax ali. Saltério de Stuttgart, século 9

Enfim, preguiça de escrever um monte se tem videozinho, então encontra no Youtube. São alguns videos longos sobre o assunto dos seaxes. Mais de hora de conversa mole.

Mas quanto às facas de guerra em si, rola um debate se eram de fato usadas em combate ou se era mais pra espetar cachorro morto depois que todo mundo tava gemendo e murmurando o nome da mãe coberto de sangue e lama. O design das lâminas escandinavas não colabora muito pro uso ativo, mais pra algo que faz o serviço de terminar o sofrimento dos outros ou espetar alguém despreparado. Além do mais, escudos. Uma faca contra um escudo resulta em frustração.

De todo modo, não existe uma tipologia concisa de facas do período, porque cada região acaba tendo uma moda prevalente. Eu recomendo um outro post do David Stribrny sobre as facas longas e a evolução delas, é bem mais detalhado do que eu poderia fazer em uma postagem que tem o intuito de ser simples e ainda tem a vantagem de separá-las por região, o que ajuda bastante.

Em suma, isso seria assunto pra uma postagem inteira bem mais longa do que eu gostaria e só pra dizer o básico. Não acho que vá rolar tão cedo, mas de repente, daqui a dois anos sai.

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Espadas: Espadas merecem um post à parte, esse talvez eu até me empolgue pra fazer e realmente saia algo dentro de dois anos. Mas vou tentar resumir o máximo possível aqui, porque existem tipologias e é bacana. E como é uma coisa que eu conheço mais do que os outros tópicos, acho que fica mais fácil sintetizar.

Uma nota sobre as tipologias de espadas da era viking é que normalmente elas trabalham com o hilt, ou seja, guardas e pomo. Até existem umas tipologias pras lâminas, mas exceto no caso de fazer uma espada historicamente correta, que normalmente não agrada reenactors (e eu poderia escrever por dias sobre isso e receber um hate gigantesco por parte dos pretensos connoiseurs que não sabem p**** nenhuma), não há tanta necessidade de se focar nas lâminas, embora vou dar uma palavrinha no final dessa parte.

Então, engole essa tipologia aí, jovem!

Tipocronologia Petersen pelo Vegard Vike 

Aqui a coisa na verdade fica até um pouco simples caso você esteja iniciando no reenactment ou se já está faz um tempo e finalmente tem como bancar uma espada. Ignora tudo isso aí, agora! Olha pras tipo H/I (alguns autores na real até acham essa distinção desnecessária, mas, enfim). Viu? De longe é um dos tipos mais comuns de espada do período. Serve pra quase todas as regiões de interesse de um recriador da Era Viking, desde o ataque a Lindisfarne (embora elas ainda não fossem tão populares então) até metade do século 10! existem literalmente centenas delas, da Irlanda ou Islândia no Oeste até a Rússia no Leste. Na Noruega são muito comuns, mas também em todo território ocupado pelos francos e eslavos. Escolhe ela pra primeira metade da era viking e não erra. Vai umas ibagens delas abaixo.
Achada em  Ingøy, bem no norte da Noruega, o que sugere que talvez até os Saami usassem espadas assim.
Outras espadas. Essas com lâminas decoradas. Imagem presente no livro Swords of the Viking Age pelo Ian Peirce e originlmente publicada pelo Anders Lorange na década de 1880

Certo, mas se você quer algo do final da Era Viking, não se preocupe! Escolha uma Tipo X. E aqui é importante prestar bem atenção, algumas pessoas confundem as tipologias e fazem bobagem. Uma espada Tipo X (chiiiiiissss) Petersen é o que eu estou falando, não uma Tipo X (dez) Oakeshott (que não é necessariamente o tipo de hilt, mas da espada toda). São diferentes, ok?

Vai fotenha. Ou desenho. Que seja.

Tipo X mais antiga, Noruega.
Tipo X tardia. Noruega.

Espada tipo X, Lança tipo I e machado tipo K. Século 10, Noruega.

Agora, não confundam com uma Tipo N, que são parecidas por fora, mas feitas de outra forma. Nas tipo X o pomo é uma única peça, enquanto que nas tipo N existe uma separação entre a guarda superior e o pomo.

Esses são os dois tipos de espada que eu recomendo aos que querem ter uma espada e não sabem qual. Então entre final do século 8 e metade do 10 uma tipo H e entre o começo do século 10 e a metade do século 11, uma X.

Se seu recorte é especificamente carolíngio ou continental de qualquer maneira, porém, eu recomendo ir com as tipo K ao invés do tipo H, embora o H ainda seja viável, mas é mais característico para a cultura. Assim como as tipo L são preferíveis para os anglo saxões.

Existe uma infinidade de peculiaridades nos hilts das espadas do período, alguns tipos que existem apenas em algumas regiões, como as tipo S Pyast da Polônia cujo hilt é feito com chifre bovino e só existe ali naquela área (o mesmo ocorre com o tipo local A do Kirpshnikov pra Rússia). Sem falar inúmeras espadas atípicas ou os subtipos do próprio Petersen.

Cada um desses tipos pode e deve ser reproduzido por recriadores, mas com a devida consciência e conhecimento do recorte. Alguns tipos são tão específicos que literalmente só existem em um único contexto (São Venceslau, tô de olho em você) e mesmo que sejam análogos a outros achados, se não na forma pelos materiais usados (como chifre de alce ou mesmo madeira), o recriador tem que ter noção de que essa espada não poderá ser usada em outros contextos. E por se tratar de um dos objetos mais caros de um recriador, é bom ter tudo isso em mente, porque às vezes a mesma pessoa recria dois ou mais recortes próximos e reaproveita seus itens, ou tem itens de uso geral de um grupo e daí isso limita quem fica coerente usando-os.

Mas enfim, quanto às lâminas, existe uma tipologia mais ou menos geral feita pelo Geibig e vou colocar abaixo a título de curiosidade. Lembrando só que tem muitos tipos de lâminas descritos pelo Geibig, essas 5 são as que nos interessam (além das tipo 14, de um gume só).

Tipologia Geibig para espadas do período Viking.

Agora, digo por curiosidade porque pra começo de conversa, num combate as lâminas tem a ponta arredondada. E além disso, como o Fedir Androschuk, um arqueólogo lindão, diz, existem mais exceções do que a regra quando você olha a imagem completa. Espadas eram coisas extremamente feitas sob medida e variavam muito dentro dessas linhas gerais e às vezes você teria uma baita dificuldade em encaixar a coisa num tipo ou outro.

Além disso pra espadas usadas em combate, que como eu disse, na maioria das vezes não são próximas às espadas originais de propósito (como essa ideia de que uma espada balanceada precisa ter o ponto de equilíbrio o mais perto possível da guarda, o que eu acho a maior asneira que a cultura pop enfiou na cabeça do reenactor médio, embora eu aceito o impacto na segurança e só por isso eventualmente ainda faço assim quando o cliente insiste muito) o formato da lâmina acaba sendo irrelevante em muitos casos. Sem falar que várias espadas industriais feitas para iniciantes com um preço acessível tem lâminas padronizadas em que apenas o hilt é colocado de acordo com o produto, como as Hanwei, Del Tin e outras tantas. E se o intuito é só o combate pela diversão e não uma recriação mais criteriosa em todos os aspectos, eu sinceramente acho perfeitamente ok usar uma lâmina que se desvie um pouco das equivalentes históricas.

O que eu recomento é dar uma olhada num geral. E se tiver como adaptar, não custa nada tentar. Eu mesmo tenho uma espada industrial que alonguei a cava, ou fuller, para chegar mais próxima da ponta, como se esperaria de uma espada daquele tipo. e também evitem espadas sem fuller, porque isso chama muito a atenção. Ou com fullers notavelmente mais finos/curtos do que deveriam. Mas no caso de ser muito largo, ainda acho que não é um verdadeiro problema, já que o impacto visual da coisa é outro.

Lembrando que independente de quão historicamente correta for sua espada para lutas, ela ainda deve ser cega (por favor, 2mm no mínimo) e não ter ponta. Já vi e já sofri/causei acidentes com isso no meu começo e não é legal.

Ainda sobre lâminas, o penúltimo adendo: espadas de um gume só também existiam no período. Eu não recomendo pros iniciantes, porque elas só são presentes na área de influência norueguesa (Oeste da Suécia, Dinamarca, Irlanda, Islândia). Elas são quase inexistentes fora desses lugares e mesmo neles (exceto na própria Noruega) aparecem em poucos números. Algo como umas mil na Noruega e 3 na Suécia. Não são exatamente esses números, mas só pra você ter uma ideia. Mas pra quem sabe o que faz, recomendo e inclusive são meu tipo de espadas favoritas.

Espada tipo F Petersen de um só gume feita por mim inspirada na C10560 do Kulturhistorisk Museum da Noruega

O último ponto, não só sobre lâminas na real, mas sobre espadas: NÃO EXISTE SABRE VIKING. A menos que você considere as espadas de um só gume como sabres, é uma possibilidade técnica, claro, mas vocês sabem ao que eu estou me referindo, aquelas coisas curvadas.

Veja bem, magiares e outros povos das estepes usavam esses sabres, existem achados do período no que hoje é considerado Hungria, mas deixa eu falar uma coisa. Existem milhares, sim, milhares de espadas dessa época encontradas na Noruega sozinha. Nem mesmo uma sequer (deixa eu ser redundante pra ver se vocês entendem) é curvada. E o mesmo vale pro norte da Europa todo e Inglaterra e afins. Pra mim isso é bem claro: nunca foi usado. Não tem essa de "recorte rus usa sabre", não. Recorte magiar usa sabre, recorte Rus não usa.

E não tem essa de "ah, mas eles faziam comércio..." porque você tem coisas com influência magiar em bolsas e outros apetrechos na área de influência escandinava, mas não tem sequer um sabrezinho. Tem montes e montes de moedas do Oriente Médio, da Ásia central, tem um fucking Buda, mas nada de sabres. Existe menos sabres do que armaduras lamelares pra você ter uma noção.

Além disso, vocês precisam usar a massa encefálica aí dentro. Sabre não funciona contra escudos redondos num confronto a pé. PONTO. É a mesma coisa que eu levar uma faca pra uma briga de revólveres e existe até um ditado sobre isso em inglês. Sabe pra que um sabre funciona muito bem? Pra cortar de cima de um cavalo e sair correndo. Uau! É exatamente assim que os magiares lutavam... Coincidência? NÃO, P****. Sem sabre na Era Viking, não importa o quanto você goste e queira ser um Rus com um sabre. Gosta de sabre? Faz um recorte magiar e fica feliz. Inclusive eles tem bolsas e arcos mais bonitos que o resto da Europa do período, prontofalei.

E sim, existem espadas tortas do período que às vezes maluco acha que é sabre. De novo, é torta. Boa parte das espadas encontradas foram descobertas quando alguém tava passando uma retroescavadeira num cantão pra construir metrô ou alargar um rio e isso amassa espadas, caso não seja óbvio. Então às vezes é só um ângulo ruim da foto ou da ilustração, mas não é um sabre.

Ah! E por favor, coloca a espada numa bainha. O mesmo que é válido hoje era válido antigamente: se você tem condições de ter uma espada, tem condições pra ter uma bainha. É tipo falar que tem carro, mas não tem gasolina. Faz favor mesmo.

Quer saber sobre espadas do período, mas não quer gastar muito e nem ler um zilhão de coisas em línguas esquisitas? Em inglês tem o Swords of the Viking Age do Ian Peirce que é um material bem bacana pra quem está no nível "não sei o que é uma espada" ao intermediário. Tem bastante errinho, umas confusões e tals, mas basicamente o livro funciona como um catálogo de exemplos icônicos pra futuros colecionadores. É o suficiente pra qualquer reenactment poder conversar sobre espadas, embora se você quer se aprofundar no meio, fica bastante aquém do ideal, mas ainda assim quebra um galho. Tem pdf. Joga no Google.

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Arcos e flechas: Apesar de não serem tão usados no reenactment, eles estavam ali pra quem quisesse usar. Mas existe uma série de desvantagem tática em usar arcos e flechas em confrontos abertos quando seus oponentes tem escudos que cobrem quase o corpo todo duma só vez e seus aliados estão virados de costa pra você colados nos seus oponentes. Mas eu disse confronto aberto e nem todo confronto era aberto.

Só pra dar um contexto, pensa em batalhas navais (tem inclusive passagem em sagas do uso de arcos em batalhas navais. São sagas, não leve tão a sério, maaaaaas, tem desenho da época também). Agora pensa em um ataque sorrateiro feito à noite num vilarejo costeiro inglês desavisado. Arcos eram usados.

Só não me vem com essa baboseira de RPGs (e eu sou rpgista desde os 13 anos de idade) e Mangá de "ain, arqueiros são mais ágeis. Não gosto de músculos e de lutar de perto". Pensa no Aragorn nos filmes do Jackson. Ele luta de espadinha e tem um arco nas costas. O ser humano é um animalzinho capaz de aprender a usar um machado de duas mãos, ter 150kg e ainda ser um excelente arqueiro. inclusive, não sei se vocês sabem, mas atirar com um arco exige que você tenha uma certa força pra puxar a corda, sabe como é.

Feito esse rant gratuíto, vou mostrar algumas ilustrações do período mostrando arcos.

Saltério de Harley, Inglaterra, Século 11

Saltério de Stutgart

Saltério de Stuttgart, século 9

Aí tem uma coisa interessante. Apesar de arcos mostrados em manuscritos francos ou anglo saxões/normandos serem muitas vezes recurvos, os achados completos o bastante pra termos uma noção dos arcos normalmente são de arcos longos simples. E eram feitos de diversas madeiras diferentes, como freixo, olmo, teixo e outras.

Outra coisa é que se você reparar nas imagens do saltério de Stuttgart, vocês notam que a parte de baixo tem uma corda enrolada. Então a corda só precisa ser posicionada na parte de cima do arco. Isso é raramente visto hoje, mas é uma maneira bastante prática de armar um arco. Talvez fosse uma moda franca no período, já que nos arcos escandinavos isso não aparece.

Alguns arcos escandinavos tem sulcos únicos feitos nas extreminades. Hoje em dia normalmente fazemos dois sulcos para a corda em cada lado do arco, mas é comum haver em arcos do período um sulco em cada lado, de modo que a corda pode ser armada de forma assimétrica.

Um sulco único na extremidade de um arco de Hedeby. Na outra extremidade o sulco estaria no lado oposto. Note que apesar da curvatura sugerir ser um arco recurvo, ela acontece depois do sulco da corda, então ele funciona como um arco reto simples.

Arcos vem em diversas libragens e tamanhos. Desde arcos de 70cm (um achado em Dublin) até quase 2m, como um dos achados em Hedeby. Este último, inclusive, com uma potência aproximada de 100 libras a 28 polegadas, embora muitas vezes fossem bastante menos potentes. Sem contar que o excesso de madeira após o sulco em alguns arcos reduz bastante a eficiência deles. Mas eles não tinham instrumentos de medição como nós temos hoje, então às vezes sacrificar potência para ganhar estilo (oh yeah!) fosse acidental, mas talvez proposital.

Mas algumas imagens sugerem que a ancoragem dos tiros não se desse a 28 polegadas. E a tradicional puxada mediterrânica, comum na arquearia moderna ocidental, também não parecia ser a regra. Existem flechas bem preservadas que tem cerca de 50-60cm de comprimento total e às vezes as ilustrações mostram ancoragem em diversos pontos, como no centro do peito por exemplo.

Saltério de Harley. Desculpe a péssima qualidade da imagem. Século 11.

Pra além de liberdades artísticas, isso sugere uma grande variedade de técnicas diferentes sendo usadas para atirar. Além de termos menções em sagas que são meio que comprovadas por achados arqueológicos de anéis para atirar com pegada com polegar e indicador, como por exemplo acontece com a arquearia mongol. Então nem tudo é tão preto no branco como normalmente é feito com a arquearia contemporânea.

Sobre as flechas em si, existe muito pouco material, mas a gente consegue saber pelo menos que elas eram feitas com três rêmiges equidistantes, como é a tradição mais comum na Europa medieval, tinham comprimentos bastante variáveis e na maioria das vezes tinham noques cavados na própria haste, embora existam achados em pelo menos dois contextos distintos na Alemanha (incluindo Hedeby aqui como território alemão e não historicamente dinamarquês) de noques separados fundidos em bronze.

Haste de arco de Oppdal, Noruega.

Uma coisa que acontece em flechas durante toda a idade media é que muitas vezes a concentração de peso da haste está na frente dela, enquanto a parte traseira, onde vão as rêmiges, afinam bastante até chegarem ao noque, onde tem mais material para suportar a corda. Isso aumenta o poder de penetração de uma flecha ao mesmo tempo em que reduz parte do peso dela. 

Agora, sobre peso, enquanto flechas pesadas hoje tem menos de 50g, às vezes só a ponteira de algumas flechas do período quase ultrapassam esse peso, fora a haste e plumagem. Não vou me alongar, mas existe uma infinidade de ponteiras diferentes. A maioria feitas de ferro, mas às vezes a haste era afiada na ponta e não precisava de uma ponta externa (inclusive o formado da haste com o peso maior na frente é bem útil nessas horas).

Existem ponteiras especializadas para diferentes tipos de caça, para pesca e especializadas para penetrar armaduras. Não vai ter fotinha, tem muita ponta mesmo. Mas num geral, apesar de ter muita exceção, se as ponteiras britânicas tendem a ser forjadas com soquete e as escandinavas com espiga. e é isso.

Quer atirar no reenactment? Não atire em pessoas. E de resto, tenha um arco tradicional ou primitivo, reto ou levemente recurvo, feito de madeira ou que pelo menos simule bem madeira, com flechas de madeira, com rêmiges presas por linhas, cabelo de cavalo, tendão animal e afins, não flechas modernas. Sabe o pessoal oldschool? Tenta ir nessa e na maioria das vezes passa por autêntico. Não se reinventa a roda.

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Ok, muitas horas escrevendo, cansei bem na hora. Na próxima parte, que um dia sai se eu não morrer antes, eu falo sobre armaduras, elmos e escudos. Escudos até podia estar aqui, mas prefiro juntar com o resto.

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Até daqui dois anos!