segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A falta de insumos no Brasil

Boa noite a todos!

O tópico abordado hoje se atém à minha área de interesse (idade antiga, tardo-antiga, medieval e até certo ponto na renascença), embora acredito que para outros períodos a situação não seja tão diferente.

Por insumos, me refiro ao mercado disponível para o recriacionista, ou seja, o que há de oferta nacional para construirmos nossa recriação.

Há um mito popular entre alguns de que o reenactor faz todas as suas coisas ou que ele deve se esforçar para tal. Balela. Assim como trabalhar pode ser parte do reenactment, comprar também pode. O comércio é uma das atividades mais antigas do Homo sapiens.

Porém, onde e de quem comprar?

Essa pergunta é o grande tormento dos recriacionistas brasileiros. Infelizmente nosso país carece, muuuuuito, de produtos de qualidade para este tipo de público. A maioria esmagadora dos artigos medievalescos aqui são voltado ao público fantástico, não um público que busca autenticidade. Notem que não estou colocando defeito nesses artigos nem dizendo que são ruins, muitos são belíssimos e extremamente bem confeccionados, mas fantasiosos.

Industrialmente, obviamente, não temos nada. Portanto, como a maioria dos que vendem vendem produtos artesanais, há uma grande chance de customização, o que permite que haja autenticidade.

Um desses vendedores/artesãos é o responsável pela Hersir Store que além de ter uma produção em couro com a mesma qualidade da que temos no exterior, também importa outros artigos de lojas especializadas lá de fora. Além dele, temos algumas pessoas que trabalham com artigos especializados como sapatos de época, roupas e alguns acessórios, ainda que a maioria desses pouquíssimos faça mais para uso particular.

Só devemos ficar atentos com alguns artesãos que "se intrometem de mais" nos nossos projetos e inventam coisas que apesar de ter uma inspiração histórica, tendem pro lado da imaginação sem mais nem menos, tornando-se um gasto inútil de dinheiro.

E falando em gasto inútil, o maior gasto ao se fazer recriacionismo histórico de qualquer período que envolva beligerância, sem dúvidas se encontra nas armas e equipamentos de proteção. Gasto inútil não pelas armas, mas pelas porcarias que existem no mercado. Apesar da febre das cotas de malha, que são bastante presentes até no Mercado Livre, armas ou mesmo armaduras feitas com placas/chapas são raras. Neste último caso, temos alguns artesãos, como eu mesmo (merchand pessoal não é crime), a Guilda dos Armoreiros e o Giuliano Armaduras. Já tive o (des)prazer de encontrar alguns outros que vendem "proteção e durabilidade" com chapas com menos de 0,5mm (o suficiente para te proteger, talvez, da chuva, mas não mais que isso).

Há também o problema de "réplicas" que não são em nada iguais às originais, tirando um traço ou dois, sendo que uma réplica deve, pelo menos, ter proporções e formas similares à original, mas isso é um assunto para outro tópico.

Quanto à vilã dos bolsos (de forma absoluta e não só para o reenactment, mas também para a esgrima ou HEMA), de forma categórica, hoje, agosto de 2013, afirmo que não há no mercado nacional quem produza boas espadas a preços acessíveis. Ponto.

Referente a este parágrafo anterior, faço algumas considerações: Há boas espadas SIM e também há espadas a preços acessíveis. Os dois juntos, anda bastante difícil. Eu sou cuteleiro, inclusive já fiz três espadas e tirando uma delas, que foi uma espada curta e como tal demandou muito menos trabalho do que uma longa, ficaram uns belos lixos. A última inclusive quebrou no último sábado graças a um problema de revenimento.

Recentemente tenho visto alguns "espadeiros" fazendo cocôs de ferro e alegando serem armas. Como espadas são ótimos tacapes. Há um ferreiro por aí que se orgulha por suas espadas pesarem absurdos dois quilos (espadas de um determinado tipo que deveriam pesar em torno de 900-1200g). Há outros que utilizam aço 1020 (um material comumente encontrado em ferro velho, com baixo teor de carbono) e dizem que a lâmina é "real". Nem mesmo alguns que utilizam a famosa "mola de kombi" são realmente confiáveis, porque apesar da qualidade do aço, é o tratamento térmico que determina a qualidade da espada pronta. Eu utilizo o mesmo aço dessas molas milagrosas (embora eu os compre virgem e não reciclado, de fato, de um kombi) e veja só, a espada quebrou porque inventei de fazê-la sem as devidas ferramentas.

Espadas, para serem feitas, exigem uma infraestrutura e um conhecimento de siderurgia muito mais avançados do que para se fazer simples facas. E quem possui esse conhecimento e ferramental com toda a certeza não fará uma peça por um preço qualquer, a menos que tenha a condição de fazê-las de forma "semi-industrial" ou algo assim, coisa que poucos cuteleiros profissionais tem interesse em fazer. No Brasil, nenhum que eu conheça. No exterior há um cara chamado Paul Binns, que faz lâminas baratíssimas para os padrões de quem recebe em libras, ao mesmo tempo que faz lâminas caríssimas "artesanais".

O problema com cuteleiros profissionais é que, apesar de conhecerem a siderurgia, terem ferramental e algum embasamento, poucas vezes eles entendem sobre espadas no Brasil. Quando entendem é de um ou outro tipo muito particulares e mais "vendíveis". E geralmente fazem peças mais pesadas e desbalanceadas do que deveriam, apesar de lindas e afiadas.

Sendo assim, por hora, nos resta importar, sujeitos a variação do dólar, taxas abusivas de importação e impostos inventados a bel prazer dos órgãos responsáveis, já que ainda assim é melhor do que comprar espadas de trezentos reais feitas em ferro comum e sem têmpera...

Por outro lado, dois anos atrás não tínhamos nem mesmo isso. E de lá pra cá surgiram excelentes profissionais. Isolados, mas fiéis à pesquisa histórica. O cenário é de otimismo. Quem sabe em breve não teremos um bom mercado em nosso país?

Enfim, até a semana.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Reenactment made in Brazil

Boa noite!

Como percebem, hoje é terça e não segunda. Esqueci de postar ontem mesmo, mas a vida segue.

Bom, muitas pessoas dizem não haver sentido em recriacionismo histórico no Brasil. Essa é a pior asneira que já ouvi.

Primeiramente o reenactment não está vinculado a um lugar específico, mas sim com QUALQUER lugar específico. Para fazer claro, no primeiro post deste blog citei sobre a Segunda Guerra Mundial e Guerra Civil Americana. Inclusive postei fotos desta última.

Como é óbvio, a guerra civil americana não aconteceu na Europa e talvez não tenha muitos adeptos por lá em termos de recriacionismo histórico, mas nos EUA é bastante comum e conta com inúmeros entusiastas.

Aqui, no entanto, não há um interesse do público em geral pela história. É pelo menos uma opinião minha, há quem apresente argumentos para o contrário, mas vamos lá.

Como desafio, eu adoraria ver um grupo de recriacionistas brasileiros, recriando, sei lá, as Bandeiras, se inspirando em personagens como Domingos Jorge Velho ou Raposo Tavares. Com seus trajes e costumes que não eram nem portugueses nem indígenas, sua cultura particular e tudo o mais. Acontece que somos ensinados desde crianças (a não ser, talvez, no estado de São Paulo onde, por outro lado, pinta-se uma imagem heróica) que os bandeirantes eram sanguinários matadores de índios (ainda que muitos nem soubessem falar português...). Independente da versão, são personagens históricos importantíssimos para o nosso país e deveriam ser melhor estudados. Não no dilema "eram bons ou maus", afinal, eu gosto de "recriacionismo viking" e é impossível dizer que eles eram bacanas quando estavam invadindo e saqueando (pra não usar termos mais fortes).

De qualquer forma, a história se trata da humanidade e não devemos atribuir juízos universais para todos os indivíduos de um certo estrato social. Ou seja, mais do que tentar limpar a imagem de alguém ou deturpá-la, o mais importante é retratá-la. E que os que absorvem as informações formem suas opiniões. Posições ideológicas devem se ausentar da recriação (embora, tal como num estudo acadêmico sobre história, isso é impossível no todo).

Desta maneira, no Brasil seria sim possível um reenactment de qualidade sobre nossa própria história, como retratar a escravidão, os engenhos de açúcar ou os contatos entre europeus e nativos. O grande desafio é fazer isto de um modo honesto. Falo isso porque há muita desinformação sendo vendida como verdade na historiografia brasileira (principalmente aquela destinada para crianças e adolescentes) e ir de encontro a essas verdades ou desmentí-las é algo complicadíssimo.

Outro ponto que acho justo abordar é o próprio recriacionismo medieval no nosso país. Há quem negue suas condições, uma vez que "não tivemos Idade Média". Pois bem, Argentina, Chile ou Estados Unidos e Canadá também não e lá estão eles, com bons grupos, com boas pesquisas e tudo o mais.

De qualquer forma, também temos uma matriz cultural vinda da Europa, além de nosso berço nativo e nossas influências africanas. Já que é assim, por que não aproveitá-la?

Dizer que um brasileiro não pode fazer um recriacionismo histórico de um período europeu é um atestado de jumentice tão acentuado quanto dizer que alguém não pode praticar karatê sem ser nipo-descendente. E dizer que nós não podemos praticá-lo por não ter nada a ver com nosso contexto seria como afirmar que a capoeira é algo que devesse ficar na África. Entendem a gravidade?

Portugal fica na Europa e nós falamos português. Isso já seria o bastante para "provar" meus argumentos, mas para quem não entende da coisa, a expansão ultra-marina portuguesa ocorreu justamente no término de um período marcadamente feudal. Aliás, como consequência deste. Podemos ter "surgido" enquanto território mapeado por um homem branco aleatório qualquer no século XVI, mas nossas raízes são mais antigas.

De qualquer forma, o recriacionismo busca incluir o passado no nosso presente, de forma educativa. Como faríamos isso excluindo os participantes apenas por não compartilharem um passado direto com a coisa?

Bom, esse é um assunto que renderia posts e mais posts se eu quisesse, mas vou me ater a poucos parágrafos, porque o realmente fundamental já foi dito e eu transmito a síntese em uma frase: Recriacionismo é uma retratação cultural, não étnica ou territorial, de um passado qualquer na história da humanidade. Logo, qualquer um pode retratar qualquer coisa, desde que tenha a vontade e o conhecimento para tal.

Até próxima semana.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Autenticidade: Não se trata de frescura, mas sim de recriacionismo

Boa noite, pessoal!

Bom, o tópico de hoje aborda o grande “vilão” do recriacionismo histórico: a autenticidade (ou “historicidade”).

O que é ser autêntico ao se fazer reenactment? Bom, certamente não é ser único e inovador, muito pelo contrário. O “autêntico”/”histórico” é justamente se manter fiel ao seu objetivo. Ou seja, utilizar objetos que, se fossem transportados para o período e local da história que visam recriar, não causariam estranhamento aos que lá viveram.

Claro, isso nem sempre é possível. No caso de alguns períodos, como o que eu e meu grupo tentamos recriar, somos obrigados (por necessidades e bom senso) a utilizar equipamentos que não existiam na época em questão, como armas embotadas e feitas de forma “não ortodoxa”, luvas e braceletes de proteção, escudos de compensado, etc...

Mesmo assim, esses objetos buscam a autenticidade na medida do possível. Por exemplo, uma espada não precisa, obrigatoriamente, ser feita através de forjamento, com aços “caseiros” e tudo o mais para ser autêntica, desde que apresente um estilo que seja próprio do período e região a qual tenta se encaixar. A lâmina também, preferencialmente, deve ter um tamanho, peso e formato possíveis, mas com algumas diferenças (como o fato de ser embotada). Isso permite que o recriacionista “sinta” a espada como ela deveria ser e assim possa explicar pros outros esse entendimento.

Outro exemplo é o uso de algumas proteções para alguns períodos. Apesar de alguns não existirem ou não serem usados em algumas épocas para em atividades bélicas, são fundamentais para a salubridade de algumas práticas que o reenactment acaba envolvendo. Nos recriacionismos medievais o combate é comum e sem a devida proteção, com o perdão da palavra, daria merda.
Assim, ainda que o equipamento não condiga com a realidade, é imprescindível. Nestes casos, deve haver um esforço para que sejam “feitos à semelhança” do período. Não é porque está “errado” de qualquer forma um guerreiro saxão do século X usar uma luva de proteção na mão da espada que ele vai usar uma luva de boxe ou uma manopla articulada gótica. Ele pode reforçar uma luva com couro, cota de malha ou mesmo “camuflar” uma luva qualquer. O ideal seria não usá-las, mas perder dedos, apesar de “histórico”, não é e nunca foi divertido.

Qualquer objeto, assim, tem a obrigação de se parecer autêntico. Existem objetos que hoje são muito mais caros do que de fato seriam no período recriado e, portanto, podem ser feitos de uma maneira alternativa convincente (como usar vidro vermelho ao invés de granada para reproduzir técnicas de cloisonné, ou costurar com uma máquina ao invés de à mão, para exemplificar). Embora a maneira original deva sempre ser preferida, essas alternativas viabilizam a prática. Acontece que em alguns pontos é estúpido pensar em alternativas, como usar cola ao invés de costura (que é algo perceptível ao olhar e bem menos resistente), utilizar tecidos e cores impróprias para a época sem uma boa justificativa, utilizar sintéticos ao invés de naturais, etc. Para um olho mais atento, até a diferença do tecido usado torna-se gritante.

Para se ter uma noção bem clara do que é ser autêntico, imaginem alguém, daqui quinhentos anos, querendo recriar nosso tempo. Se a moda no futuro for tecido de pêlos de cachorro, eles não poderiam usá-los dizendo que nós nos vestíamos tipicamente assim. Também poderiam inventar carros baseados nos nossos, não estariam totalmente errados, mas não poderiam, por exemplo, criar carros de cinco rodas, só porque viram um triciclo e acham que a numeração ímpar é válida. Também não devem andar todos de triciclo por ser mais barato (digo no futuro, provavelmente), já que não é o que é visto em nossa época. Por isso há a necessidade do estudo. É importante saber o quão comum era uma coisa antes de usá-la. E se for uma peça “única”, ter consciência disso pro caso de alguém levantar a pergunta, já que às vezes pode haver no público que observa um evento recriacionista algum cretino especialista no assunto que vai adorar provar que alguém está errado. Ou seja, a menos que nossos descendentes façam, por exemplo, um grupo de reenactors de um moto clube de triciclos, esse tipo de veículo seria a minoria, mas com a “desculpa adequada” do motoclube, estaria “liberado”.

Usando a mesma linha de raciocínio, imaginem alguém tentando demonstrar como seria o “executivo” padrão de nosso século. Caso todas as gravatas e imagens tivessem desaparecido exceto as com estampas cômicas, não seria errado que eles as usassem, pois saberiam que os executivos usavam gravatas e tendo apenas uma dos Simpsons à mão, seria uma visão aproximada da realidade, ainda que “errada”. Isso é importante ser dito pois, em muitos casos, nós nunca saberemos como um povo se vestia de fato, mas tendo alguns achados, podemos nos basear neles com segurança, ainda que na época fosse uma exceção.

Isso nos informa uma verdade desastrosa para quem não estuda com afinco: mesmo um aficcionado, estudioso, phd em arqueologia pode estar completamente equivocado, então pense naquele que apenas “viu uns filmes/seriados” ou “viu umas fotos legais”.

Como se não bastasse a atenção a cada detalhe, o pesado estudo e o risco de novas descobertas acabarem com toda a diversão, há ainda o problema de que você, num recorte específico, jamais mostrará de fato uma época por completo. Usando novamente o exemplo de um futuro reenactor do século XXI, seria possível um traje com elementos típicos do público fã de música sertaneja, mas usando uma camiseta do Metallica e uma corrente de ouro no pescoço. Ou ainda que fosse um completo “roqueiro de uniforme”, usando exatamente os mesmos trajes que alguém num grande show, ele só mostraria apenas uma faceta minúscula da sociedade na qual vivemos (e mesmo deste recorte que ele tentaria recriar), não podendo dizer “é assim que se vestia um fã de heavy metal no século XXI”. E se ele dissesse “um típico fã”, apenas deixaria a frase menos afirmativa, mas mesmo assim insuficiente.

Como fica claro, a autenticidade “mata” a criatividade. E esse é o preço que se paga pelo bom reenactment, mas é altamente necessário para que não caiamos na fantasia (que não é problema algum se for esta a intenção, mas se torna um problema, tipo quando você quer uma capivara mas só consegue um porquinho da índia, que pode ser legal, mas não é a mesma coisa). O reenactment tem como intuito principal ilustrar algum período específico e não inventar um tempo-espaço somente “influenciado” pela realidade.

Diversos outros exemplos poderiam ser citados (e percebo que numa terra onde temos milhares de reis - como Xuxa, Pelé, Roberto Carlos, para não citar outros -, eu estou quase assumindo o reinado dos exemplificadores), mas a postagem já se alongou muito e terminarei aqui.

Caso queiram algum tópico mais específico, basta comentar pedindo.


Até a próxima!

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A importância de um "recorte" específico

Boa noite!

Uma semana se passou e acho que farei os posts semanalmente. Assim fica mais fácil de administrar e o blog não morre em um só mês com tantos assuntos.

Mas vamos ao que interessa, o tema de hoje é algo que eu e alguns amigos chamamos de "recorte", embora possa haver uma boa centena de termos para o assunto, como uma "caracterização específica", "localização espaço-tempo", "foco", "período de interesse" e por aí vai.

O recorte nada mais é que uma escolha do recriacionista a cerca do que ele de fato deseja recriar. Não basta dizer "faço reenactment viking" ou, mais genérico ainda, "medieval reenactment". Por que não? A Idade Média, oficialmente, tem mais ou menos mil anos. Só a Era Viking tem quase 300. A primeira acontece, teoricamente, em toda a Europa e a segunda também, embora a tratemos como exclusiva às regiões setentrionais e mais ocidentais do continente.

Agora faço a pergunta: é possível imaginar um espaço tão vasto e um período tão longo com uma uniformidade, seja em qualquer aspecto? É ingenuidade ou, desculpem-me, burrice acreditar que "medieval" ou mesmo "viking" sejam adjetivos específicos, isso sem entrar no mérito da discussão sobre a etimologia e usagem do termo viking em si, que é alvo de pesquisas desde o século XIX (como tudo, praticamente).

Assim sendo, ao se recriar um período, é fundamental fazer um recorte dentro dele. E quanto mais específico, mais verossímil a recriação será.

A especificidade é um negócio chato, já que nunca será real. Dificilmente vemos um reenactor que queira retratar um camponês ou fazendeiro, embora esses fossem a esmagadora maioria das pessoas de antigamente (e em alguns lugares, até hoje). As pessoas tendem a desejar sempre "ser o fodão". E isso é natural. Qual é a graça de se empenhar numa prática pra usar trapos sujos? A regra hoje é, indubitavelmente, a exceção de outrora. E espera-se que os recriacionistas trabalhem com o típico e não com a exceção. Então como fazer?

Aí o recorte ganha sua força. Ao se retratar "um nobre carolíngio da segunda metade do século IX", certamente você não está trabalhando com o típico homem carolíngio, mas com um modelo que era minoria. Mas você deve retratar sempre o "típico nobre carolíngio da segunda metade do século IX". Assim você pode dar uma noção de como era essa especificidade. Entendem a jogada? Um recorte bem fundamentado, ainda que específico, é legitimado. Já que o "típico homem carolíngio", enquanto este período durou entre os francos, é um conceito mutável em questão de décadas.

"O típico viking" também não existe, pra demonstrar a ilusão que alguns possuem. No final do século VIII certamente eram saqueadores navais que cultuavam deuses pagãos. No século XII-XIII, a Escandinávia inteira já era cristianizada e o próprio termo "viking" passou a ser usado, inclusive, para cruzados.

Desta forma vemos que há uma grande enganação ao tentar retratar o "típico", pois o típico é uma coisa meio volátil. Mas o "típico-específico", apesar de parecer uma contradição semântica, é o terreno da recriação histórica.

Veja bem, se você usa um elmo suéco do final do século VIII, uma espada norueguesa do meio do XI e trajes com adornos saxões do século IX, você não está representando NADA que existia no período. Seria como dizer que um brasileiro do século XX usa chapéu de cangaceiro, walkman, bombacha e gravata, só porque todas essas coisas existiram nesse século no Brasil.

Por isso é importante escolher esse recorte, pois apesar de retratar uma minoria, você recria uma minoria "passível de existir" e não um ajuntado genérico que causariam um bug mental na cabeça de quem o visse naquele tempo e lugar, já que muitas vezes (e isso ocorre até hoje), as pessoas se identificavam por códigos culturais e sociais bem estabelecidos, que indicavam sua origem, status e até mesmo suas filiações ideológicas e familiares. Uma mistura deliberada desses códigos gera uma incoerência terrível.

Claro, uma certa flexibilidade é sempre útil, já que como direi no meu próximo post, é impossível saber, de fato, como um período mais "remoto" era. No entanto devemos, caso queiramos fazer um recriacionismo no mínimo decente, buscar essa verossimilhança. Do contrário, poderíamos simplesmente usar kilts e coturnos militares, com um cocar de índio norte-americano e falar "sou um recriacionista da Idade Moderna".

Enfim, espero ter elucidado algumas questões (e, é claro, gerado outras).

Até segunda que vem!