quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Como montar um kit - Parte 2: Periféricos

Seguindo, depois de dois anos, com a postagem anterior, vou falar sobre os periféricos de um kit para os séculos 8-11 (algarismo arábico mesmo, porque isso não é uma publicação acadêmica e fica mais fácil de ler).

Por periféricos eu digo vários utensílios, peças de roupa e afins que podem ser retirados e trocados com facilidade do kit sem descaracterizá-lo. Além, é claro, de coisas que não ficam o tempo todo no corpo e que apesar de comporem um recorte (ou não, já que tento fazer algo mais neutro aqui) não são peças fundamentais para o reenactor. Muitas dessas peças ficam de lado durante uma recriação, você provavelmente vai deixar algumas delas na sua tenda e só pegá-las quando a necessidade surgir e por aí vai.

A lista que segue é mais sobre essa parte, então dêem uma olhadinha na Parte 1 pra ver o resto das coisas.

Bolsas/pouches
Capas
Gorros
Utensílios "primários"
Utensílios "secundários"
Facas/ferramentas
"Enfeites"

Dessa vez, porém, vou me focar em alguns exemplos mais específicos, já que são coisas que podem acabar gerando anacronismos meio bizarros quando colocadas juntas no caso de uma lista tão grande. Diferente de vestimentas, que são fundamentalmente voltadas pra praticidade e acabam não sofrendo tantas alterações ao longo dos quase 300 anos da Era Viking, outros objetos muitas vezes sofrem alterações enormes em menos de uma geração, por uma simples questão de moda ou "tendência", mesmo que fossem mais duradouros que na nossa sociedade atual.

Mas pense só: a calça jeans e a camisa social são basicamente as mesmas sem muitas mudanças faz um baita dum tempo. O design de um celular, por outro lado, muda a cada ano, independente da funcionalidade. Um smartphone de 3 anos atrás tem as mesmas limitações de design que um que foi lançado ontem, mas o fato de a tela ser 3 ou 7mm mais larga ou mais estreita, mesmo sem ser uma necessidade, serve pra que visualmente você saiba que é um modelo com um processador ou uma câmera com bem mais potência. É como um carro que muda o formato da lanterna, só pra diferenciá-lo do modelo do ano anterior.

Por isso vou mais comentar sobre algumas possibilidades, sem necessariamente localizar em século e nome do achado (se não fico a vida inteira aqui), mas focar em explicar um ou outro exemplo com as referências do que é mais universal.

Mas pensemos que a nossa sociedade não é tão diferente assim das sociedades que reconstruímos. Prender a capa com um broche cheio de ouro e granadas em pleno século 9 certamente mostraria que você tinha mais dinheiro do que um cara que usava um mais discreto de prata, mas o primeiro seria visto como  hoje vemos um riquinho excêntrico que usa um colete com relógio de ouro preso na corrente dentro do bolso como se estivesse em 1915: demonstra riqueza, mas é cafona. E como o reenactor, a menos que tenha plena consciência do que está fazendo, tenta recriar mais o típico do que os pontos fora da curva, eu não recomendo.

Então, às peças.

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Bolsas: Como vocês podem ter percebido pelas calças na Parte 1, calças do período não tinham bolsos. Então eles tinham que usar outra solução pra não ficar sempre segurando coisas importantes nas mãos.

A lógica é a mesma de quando uma mulher usa um vestido hoje em dia. Ou essas calças com esses bolsinhos decorativos. Ou calças muito coladas em que um celular mal entra. Quantos de vocês já viram, ou quantas de vocês já fizeram de guardar o celular, a carteira ou dinheiro no sutiã?
Pensemos nas calças do período mais como grandes meias que protegem as pernas do que calças no sentido contemporâneo. E pense nas bolsas da forma que as pochetes estavam em alta nos 90.
Mas que tipos de bolsas eram usadas? E pra quê?

A resposta pra primeira pergunta é sempre chata: uma caralhada. A resposta pra segunda: muito do que usamos hoje em bolsos e bolsas, mas em versões menos tecnológicas, claro, que explico mais pra frente na parte dos utensílios.

Mas existem bolsas que são nada mais do que um pedaço de couro furado nas extremidades com uma cordinha que mantem tudo junto à bolsas revestidas com jóias e pedras preciosas, com vários e vários bolsos e divisórias e coisa e tal. inclusive coisas que são parecidas com carteiras modernas, mesmo que obviamente não fossem pra colocar documentos, mas pequenos objetos de todos os tipos. Curiosamente (não na verdade) hoje a situação é igual, não?

Salmo de Harley, Século 11, Folio 66v. Um dos suplicantes carrega uma bolsa grande. A mesma ilustração, com algumas diferenças, também surge no Salmo de Ultrecht, início do século 9, de onde possivelmente foi copiada.
Alguns tipos, como as famosas pouches em meia lua ou bojudas no meio reenactor, são bem mais comuns num período pré-viking e depois dele, embora reapareçam com formatos diferentes nesses períodos posteriores. As pouches propriamente ditas que são comuns na era viking são quase todas de formatos mais longos do que largos e geralmente surgem mais em áreas com forte influência oriental (entenda "leste" ou "Ásia Central", ok? Nada de Ásia oriental), como Suécia, regiões do leste da atual Polônia, Rússia, Hungria e afins, então pro iniciante, eu não recomendo muito, porque te coloca num lugar e num espaço de tempo específicos.

De outros tipos também tem bolsas com formato de lira, decoradíssimas com pedaços de metal, bolsas com "abridores" de madeira de tamanhos que variam de 15 até 40cm, pedaços de tecido que simplesmente embrulhavam as coisas e por aí vai, a variedade é muito grande e não "classificável", porque era simplesmente gente tentando carregar as coisas do dia a dia da forma que podiam. Daí surgem estudos tipológicos sobre bolsas, inclusive.

Essas com alças/abridores, tem evidencia na Dinamarca/Noroeste da Alemanha e Suécia durante o período, mas elas surgem em ilustrações até no mundo muçulmano em períodos mais tardios. Normalmente se pensa nelas utilizando tecidos, mas couro também é uma possibilidade, embora couro o bastante, de uma boa qualidade, pra fazer uma dessas talvez não fosse acessível às classes mais humildes. Outra coisa é que eu não recomendaria o uso disso por recortes mais bélicos por assim dizer, simplesmente porque a alça é relativamente frágil e quebraria fácil.

Alças de bolsas de Hedeby. Todas as alças encontradas em Hedeby eram de madeira, mas existem análogas em Birka e Uppsala, feitas de madeira e ossos (possivelmente também chifres de renas e veados).

Reconstrução encontrada em https://nattmal.wordpress.com/2015/05/14/haithabu-bag/ com todas as informações que você vai precisar pra esse tipo de bolsa.
Agora, um tipo de bolsa que é onipresente desde o período clássico grego (e possivelmente bem antes) até hoje em dia em alguns lugares, cobrindo áreas de todos os continentes, basicamente, são as tais "drawstring pouches". Leia-se "saco com uma tira na boca que faz ela fechar". Elas existem em diversos materiais e tamanhos, em diversas classes sociais e contextos. É o que eu realmente sugiro pra todo reenactor do período viking que não possui um recorte muito bem estabelecido e mesmo pra reenactors mais chatões que não querem cometer gafes.

Imagem ilustrativa retirada da internet. Não corresponde a nenhuma original, embora a idéia seja essa.
Em York do século 10, por exemplo, se tem um achado de uma feita de seda púrpura, o que é prova mais que significativa de que gente rica também usava. Em contrapartida, na Groenlandia se fazia com testículos de carneiros, que já vinham praticamente no formato ideal "de fábrica". O hábito provavelmente era o mesmo na Islândia.

Uma bolsa de York, século X, feita em couro de ovelha ou cabra
O formato é uma questão também "livre". Às vezes um retângulo dobrado, costurado nas laterais e com os furinhos pra um couro ou cordão, como em Hedeby, século 10 também, às vezes um círculo grande com furos ao redor das extremidade onde você passa uma corda que entra e sai e quando puxa, voilá! Uma bolsa! Esse último método também com achados em Hedeby e York com datação entre 9 e 10. Fora fragmentos de 12 túmulos em Birka com pedaços de couro que foram interpretado como bolsas assim, embora nunca tive acesso aos formatos delas. Essas de Birka guardavam moedas, contas de vidro, pedaços de ligas de cobre, pesos comerciais, pingentes, espelhinhos e tal, por exemplo, ou seja, dinheiro e coisas ligadas à profissão que se usava diariamente, igual a hoje.

E tem de todo tamanho e continuou em uso por todo o resto da idade média, idade moderna e tal. Então na minha opinião é a melhor coisa que você pode usar pra guardar suas coisas. Se não cabe tudo numa só, use mais de uma talvez, mas sempre foque em praticidade: uma árvore de Natal parada pode funcionar, uma que se mexe pode começar a esbarrar nas coisas com seus enfeites e eventualmente alguns vão cair e você só vai reparar depois, portanto tenha parcimônia.

Geralmente o cordão usado pra fechar a bolsa é usado pra amarrá-la num cinto ou às vezes dá até pra usar como colar. Então não tem muito erro, mas tem também a possibilidade de se costurar uma alça pra que não se tenha que tirar a pouch do cinto sempre que for mexer nela. Se não quer que fique à mostra por ter alguma coisa de valor, como dinheiro que você está mantendo no meio de uma feira e tal, coloque no cinto da calça, sob a túnica e ninguém nem vai ver. Aliás é como faziam antigamente, dependendo do contexto. Sempre existiram alguns sujeitos com dedos leves por aí.

É a solução mais historicamente correta, universal pra qualquer período e classe social, adaptável em termos de tamanho e fácil de se fazer, porque você não precisa nem saber costurar nem ter ferramentas específicas além de uma tesoura, se for fazer uma redonda. E o legal é que se você não usa couro por algum motivo, ainda pode estar historicamente correto usando tecido.

Agora, se você realmente curte as bolsas mais "sólidas", feitas inteiramente em couro, não tem jeito, recomendo um estudo aprofundado da área e período que deseja recriar, já que decoração, formato e estilo de suspensão costumam ser muito dependentes de contexto cultural e social e isso te amarra a um recorte mais específico.

Se tem muita vontade de fazer algo pra carregar as tralhas num recorte mais civil/pacífico, use ou uma drawstring ou uma como as de Hedeby. Quanto mais decorada, maior sua classe social. Evite entalhes nas alças, bordados e tecidos com cores muito vivas se você não tem noção do seu recorte e ficará bem. Bordados em estilos artísticos regionais, entalhes mais minuciosos, seda, peles felpudas e afins são sempre boas opções uma vez que seu recorte estiver bem definido.

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Capas: Qualquer pedaço de material macio pode ser chamado de capa. Muitas são pedaços de lã grossa retangulares, outras podem ser forradas com peles de animais, decoradas com seda, fios de ouro e tudo o mais que se possa pensar. Algumas são forradas com tecidos mais finos, algumas arrastam pelo chão, outras aparentam ter um gorro emendado. As possibilidades são quase infinitas.

Tapeçaria de Bayeux, século XI. Notem as duas possívels maneiras de prender a capa: uma no ombro direito e outra no centro do peito.
A melhor coisa das capas é que assim como as túnicas, aparecem bem visivelmente na arte do período, sem muita chance de serem confundidas.

Hexateuco inglês, também século XI
A quantidade de tecido usada numa capa serve também de indicador de pobreza ou riqueza. Basicamente, quanto mais tecido, mais trabalhada, anatômica e com melhores tecidos, mais rica a pessoa usando aquela capa é. Por outro lado, nas ilustrações do período é normal que as capas sejam todas mais ou menos do mesmo tamanho e sempre grandes. Isso porque os ilustradores normalmente eram membros do clero e as pessoas retratadas sempre tinham alguma importância. Então da mesma forma que um milionário nem sempre presta atenção nas roupas de um mendigo, um monge, por exemplo, não ilustraria um pobre com 100% de fidelidade, isso nas raras ocasiões em que ilustraria a pobreza (além, claro, da pobreza num sentido litúrgico, santificado e tal, mas esses pobres ainda são cheios de uma aura de dignidade beata e não "pobres comuns").

De qualquer maneira, pegue um retângulo grande de alguma lã grossa, mais ou menos 1,5m x 2,5m e se embrulhe. Se quiser algo mais "estiloso", corte-a num meio círculo. Se quiser algo mais ostensivo, forre com linho ou pele, ponha weavings ou bordados nela e por aí vai.

Na Dinamarca, nos pântanos de Hald, existe evidência de capas feitas inteiramente de peles de animais. Infelizmente não tenho acesso a melhores pesquisas sobre o tema e não sei de que tipo de animais as peles pertencem, porém é sabido que se criavam ou caçavam diversos tipos de espécies justamente pelas peles, como ursos, ovelhas, coelhos, gatos (estes inclusive se popularizaram no norte da Europa justamente pela pelagem e carne) e por aí vai. Além disso, é de se imaginar que comerciantes de peles utilizassem seus produtos pra mostrarem a qualidade, embora peles de animais fossem um produto custoso e portanto reenactors tentando ilustrar uma pessoa comum do período deva evitá-las.

Por mais que a lã seja mais cara hoje do que o linho, antigamente dependendo do local era o oposto. Um pastor teria lã sempre disponível, fosse para tecer ou fazer um feltro e essa é uma boa solução pra um reenactor recriando homens mais pobres. Uma lã melhor tecida indica muito tempo gasto na confecção e sugere uma pessoa mais abastada, ou pelo menos um homem livre.

Uma "colcha de retalhos" também é uma possibilidade para castas mais baixas.

Por mais que um caçador tivesse fácil acesso a peles de animais selvagens, tem que se lembrar que muitas vezes a área era propriedade de um determinado senhor local e por isso o caçador não teria permissão de utilizar essas peles sem pagar o devido tributo ao "dono" da floresta onde caçou, então a ideia de usar um monte de peles rasgadas como capa deve ser evitada, ou adotada por pessoas que queiram claramente retratar alguém que viva à margem da sociedade (isso reflete todo o resto do kit), um fora da lei ou algo do gênero. Usá-las dentro de um contexto mais inserido socialmente não é impossível, no entanto, mas aí seria mais sensato usar peles de animais domésticos, usá-las como forro de uma capa de tecido, como cobertas e afins.

Gorros/Chapéus: Se está frio, proteja sua cabeça além do corpo. Isso é óbvio. E pensando em invernos rigorosos e nenhum aquecedor elétrico, como era esse período, não é de se estranhar a ideia de cobrir a cabeça com gorros e chapéus.

Existem poucos sobreviventes materiais do período, mas a arte normalmente está cheia de ilustrações que sugerem aliens humanóides de cabeça deformada ou acessórios de vestuário.

Daí temos que categorizar os gorros. Por um lado são como chapéus estilo o do Papai Noel (basicamente aquilo mesmo, embora sem o pompom, mas talvez?), depois outros tipos de chapéus mais "planos" (é mais fácil ilustrar do que explicar, segue lendo), daí depois como um gorro que cobre os ombros, parte do tórax e que tem um buraco por onde o rosto fica visível.

Do primeiro tipo não se tem evidência arqueológica convincente, porém aparecem (embora eventualmente possam ser representações de elmos, por isso há que se ter cuidado) em diversas representações artísticas do período como a Crus de Middleton, na Inglaterra ou a famosa estatueta de Freyr de Rällinge, Século 11 na Suécia, entre diversas outras.

Freyr de Rällinge. Apesar da possibilidade de ser um elmo com uma liberdade artística bem grande, é bem capaz que seja um gorro bem natalino, não?
É de se imaginar que as pessoas tivessem acesso a qualquer trapo pra cobrir a cabeça e é relativamente barato fazer algo assim com sobras de lã grossa cortada em dois ou mais de triângulos ou afins. Porém o fato de aparecerem na cabeça de deuses e figuras lendárias talvez signifique algo. De qualquer modo é algo simples o bastante e ajuda a manter a cabeça quente, afinal.

Possível reconstrução mais simples encontrada em https://www.wulflund.com

Uma possível reconstrução mais elaborada. Infelizmente não achei o autor.
Portanto, eu faria algo assim de lã para me proteger do frio se fosse alguém mais pobre, mas sem nenhum tipo de decoração. Inclusive sem uma barra decorada com weavings.

Se for forçar um pouco a barra e classificar como o mesmo tipo de chapéu, existem alguns feitos com naalbinding, uma espécie de crochê (pra falar bem simplificadamente, mesmo que seja diferente). Um chapéu atribuído a São Bernardo de Claraval, século 12, e outro de São Simão de Trier, século 11, foram feitos dessa maneira. Ambos hoje são guardados como relíquias e não consigo encontrar uma imagem, mas basicamente são parecidos com toucas de lãs modernas, mas menos thuglife elastano.

O segundo tipo de chapéu segue a mesma ideia, mas com um topo, então não seria necessariamente algo triangular, cônico, mas parecido com a parte de cima de um quepe, ignorando a aba. Existem alguns achados desse tipo de chapéu, ainda que pouca ou nenhuma evidência na arte, o que é o oposto do caso anterior. Um na Holanda e outro em Hedeby, pelo menos, embora o de hedeby talvez fosse outra coisa, mas é normalmente associado a esse tipo de chapéu.

William Short do Hurstwic usando um chapéu com o topo achatado.

Chapéu de Leens, Holanda. Datado entre os séculos 7 e 9.

Uma reprodução encontrada no Etsy, pelo vendedor Nnornir.

Apesar da raridade desse tipo de chapéu entre recriadores, é uma opção viável para qualquer classe social, dependendo da região. Tanto Hedeby quanto os Países Baixos se encontram a noroeste da atual Alemanha, então é possível que fosse uma moda regional, mas pelo menos para os recortes dinamarqueses cai até que bem.

Lembrando sempre que quanto mais "firula", mais rico o usuário.

Existe ainda um outro tipo de chapéu que foi encontrado apenas nos Países Baixos, contemporâneos ao de Leens, exceto por uma escultura de uma cabeça de madeira em uma igreja, datada do século 11 em Dublin, com um homem usando o mesmo tipo de chapéu que o chapéu encontrado em Aalsum. Infelizmente não tenho a imagem da estátua, mas o chapéu, apesar da construção diferente, apresenta um formato parecido com o de Leens, mas com um prolongamento que cobre a nuca e orelhas.

Chapéu encontrado em Aalsum, Países Baixos (500-900). Esse chapéu foi feito com 4 tipos de tecido de lã distintos, sugerindo que foi feito com retalhos.
Esses tipos todos são basicamente chapéus e eventualmente podiam ser decorados com peles de animais como descrito por Ibn Fadlan ou nas Njals saga e Ljosvetninga saga. Nas sagas é dito que esses chapéus são dados como presentes de reis na região da atual Rússia e Ucrânia e Fadlan visitou a Bulgária do Volga. Como não existem evidências pra isso e as sagas islandesas são bem específicas ao mencionar a região, é de se supor que no Oeste isso não fosse uma prática comum, portanto evitemos ao máximo os pêlos em chapéus, a menos que nossos recortes sejam russos, polanos e afins. Se você não tem ideia do recorte, não ponha pêlos e mesmo assim pode passar por um Rus, já que afinal, são presentes de reis e no caso de Fadlan, esse chapéu enfeitado é usado justamente pro funeral de um chefe, não usado por todos.

Agora, gorros a coisa facilita e complica ao mesmo tempo.

Fragmento de gorro de Hedeby e ilustração de pedra rúnica expostos no Wikinger Museum Haithabu
Achados arqueológicos dentro do período são apenas Skjoldeham, Noruega e Hedeby, atual Alemanha e Dinamarca no período. Ambos de lã. Fora do período existem similares nas Orkney (Escócia), em Bernuthsfeld e Thorsberg (ambos na Alemanha),  Bocksten (Suécia) e na Groenlândia, o que indica uma tradição contínua e bem espalhada, embora por toda a Europa esse tipo de gorro é bastante comum durante o fim da Idade Média.. Isso sem contar ilustrações, como o Salmo de Harley já citado aqui e várias pedras rúnicas em Gotland.

Surpreendentemente, apesar de ser um homem do século 14, todas as roupas do homem de Bocksten possuem paralelos na Era Viking. Seus outros utensílios, no entando, são bem característicos de tempos posteriores.
Alguns possuem uma espécie de cauda atrás da cabeça, outros não. As construções variam muito, o número de peças também. Algumas, como a de Hedeby, indicam que tufos de lã costuradas ao tecido, outras tem esses tufos na barra inferior, como uma encontrada nas Orkney (séculos 3 a 7). Mas a ideia geral é basicamente a mesma, então é uma aposta segura por parte dos reenactors, desde que não tenha características muito específicas (como o "babado" da Orkney, por exemplo).

Gorro encontrado nas Orkney, 215-615AD.
Num geral, uma cauda significa que você pode gastar mais tecido com uma coisa simplesmente estética. Além disso a cauda aparece mais retratada em pedras rúnicas, já que a cauda na montagem do gorro de Hedeby talvez seja uma leitura diferente do achado que a real. Ou seja, isso é algo associado a riqueza ou pelo menos. Então se não quiser passar essa ideia, use uma com uma cauda curta ou sem cauda nenhuma, como a de Skjoldeham.

Todas as evidências apontam o uso de lã, ou tecida ou na forma de feltro. Não existem evidências pro período, ainda que surjam posteriormente, pra gorros forrados internamente, mas não se pode excluir a possibilidade. Não há evid~encia alguma pra gorros feitos de couro.

Se não possui um recorte definido, use um tecido sem cores vivas e com a cauda curta ou inexistente. Se possui, a chance de customizar está em usar uma lã com padrões mais nítidos, cores mais vibrantes, talvez até enfeitar as bordas com weavings e afins.

Por último na parte de chapéus, existem chapéus para dias de calor também. Eles vem e vão em vários estilos desde antes de Cristo e ainda estão por aí. São basicamente chapéus de palha, talvez até couro, ou panos que se põe na cabeça pra evitar a luz em dias muito quentes. Aparecem em ilustrações do período, principalmente no século seguinte ao final da Era Viking, quando a vida de pessoas comuns começa a ser retratada mais frequentemente (embora não apareçam na tapeçaria de Beyeux), mas é fácil de dentender a ausência nos achados arqueológicos.

Bíblia de Morgan, século 13. Além dos chapéus diferentes, com cores diferentes, sugerindo materiais distintos, alguns camponeses tem panos simples na cabeça pra evitar a luz solar direta na cabeça.

Salmo de Eadwine, século 12. Um camponês sem calças, descalso e de chapéu afiando uma foice. Acreditem, ele ia sentir muito calor esse dia.
Utensílios primários e secundários: Não tem um nome mais genérico e ingrato que esse pra uma categoria, mas é o único que eu consegui encontrar pra descrever coisas tão díspares. Vai ter pouca foto aqui, mas é mais pra dizer o que você pode querer ter no seu kit que ajuda um bocado.

Basicamente se você for um reenactor hardcore, você vai querer fazer fogo com pederneira, costurar as próprias roupas, afiar as próprias facas antes de cortar a comida e por aí vai. E o que é primário ou secundário pra você pode alterar bastante de acordo com as suas habilidades ou interesses.

Uma pedra de amolar, um isqueiro pra pederneira, uma pederneira em si, um carretel de linha, agulhas de osso, latão, chifre ou seja lá o material, colher de orelha (ah, os ancestrais do cotonete... eram bons tempos), tesoura pequena (uma tesoura de tosquia em miniatura), uma sovela pra furar coisas ou limpar debaixo das unhas, um punhado de resina pra colar as coisas... A lista é infinita, mas num geral são miudezas que talvez você nem precise porque nunca usa.

No meu caso eu classifico como primário as coisas pra fazer fogo e pra afiar minhas ferramentas, mas veja bem, eu sou um ferreiro, um costureiro teria isso no fim da lista. Um isqueiro de aço, uma pedra de sílex ou qualquer quartzo que eu tenha a mão, fibra de juta/cânhamo/tecido carbonizado, pedra de amolar grossa e fina, resina de pinheiro pra colar cabos ou pra ajudar a iniciar um fogo... por aí vai.

Coisas que carrego comigo sempre. Um EDC reenactment.

Como secundário eu diria retalhos de tecido, linha e agulha que sempre fazem falta, mas eu posso esperar voltar pra casa pra costurar. Higiene pessoal como colher de orelha ou sovelas, mas de repente o evento é de um dia só, então eu posso tomar um banho assim que voltar pra casa ou onde eu estiver hospedado, pentes ou pequenos instrumentos musicais pra passar o ócio, mas posso me arrumar antes de sair de casa ou passar o tempo conversando... por aí vai. Mas se eu for alguém que trabalha com couro, a linha e agulha são número um e enfim.

É bom ter tudo isso em mente na hora de criar um kit pra não passar necessidade em eventos longos, de dias. Mas não é nada necessariamente imprescindível, você pode viver muito bem sem, entendem? Mas se for fazer, tenta buscar referência de como essas coisas são pra região que você for recriar. E se quiser ficar neutro, tenta coisas sem formas rebuscadas e sem enfeites. Uma pedra de afiar perfeitamente retangular e sem desenhos, um striker basicamente reto ou em forma de C e tals. Mas linha, agulha, anzol... Essas coisas são meio que comuns em todos os lugares com formas bem simples, mas acreditem, sempre tem como encher de bling, daí é bom pesquisar se quiser algo mais legal ou evitar se não tiver um recorte.

Facas: Isso poderia estar como utensílios, já que estou falando das facas de uso geral e não armas, mas eu acho a vida sem uma faca durante uma recriação tão impossível (comer, cortar pequenas coisas como tecidos e linhas, etc...) que ela merece uma categoria à parte. Afinal, "Knívleysur maður er lívleysur maður", não é mesmo? E elas dizem muito sobre o usuário.

Basicamente se você não tiver um recorte específico, evite coisas muito cheia dos gueri gueri.  A faca ilustrada na seção anterior seria basicamente perfeita se não fosse aquela linha gravada na lâmina, porque aquilo indica um trabalho acima da média, é decoração. Como meu recorte é o de um ferreiro, faz sentido eu ter um trabalho com uma coisinha a mais pra dizer "olha, meu trabalho permite eu perder tempo com enfeite e cobrar mais por isso". De resto, ela é bastante simples.

Facas "universais" durante toda a era Viking. Da groenlândia à Rússia, da noruega à África, esse formato de lâmina existe desde a idade da pedra e nos acompanha até hoje. A bainha, no entanto, é baseada em bainhas do Sul da Escandinávia, séculos 9-10.
Vários lugares e períodos possuem características muito marcantes, mas uma faca "coringa" tem o dorso mais ou menos reto, o gume formando uma barriga, é pontiaguda o bastante, pequena o bastante (entre 5-15cm) e com um cabo de madeira simples. Não se reinventa a roda. Porém elas existem em alguns locais ao mesmo tempo com facas "nativas", que são tipos regionais e bem localizados temporalmente de lâminas que só devem ser usadas se você tiver um recorte bem específico.

Outra coisa que varia enormemente é a forma com que essa faca é mostrada. Bainhas são não só uma forma de transporte das facas, mas uma espécie de mostruário e isso vai pra além da biomecânica do objeto e está sujeita a variações culturais e sociais absurdas. Tal como cabos, claro.

As bainhas da foto, por mais que sejam especificamente feitas com base em achados dinamarqueses, são relativamente comuns em todas as áreas de interesse para recriadores da Era Viking. No fim do período, porém, existem diferenças regionais que devam ser observadas, especialmente quando se chega finalmente ao século 12, mas entre 800-1050 elas são bastante presentes, então é o que eu recomendo, independente da classe social.

Toda decoração (exceto linhas retas e padrões de ponto-e-círculo) amarra seu recorte e eu recomendo evitar se você não souber ainda o que fazer. principalmente desenhos e detalhes metálicos nas bainhas. Uma dessas pode te acompanhar em qulaquer recorte, então não amarre a faca a um lugar e período fechados a menos que saiba o que está fazendo.

Ferramentas: Isso eu ponho na lista pensando em artesãos que fazem demonstrações ao vivo, não faz muito sentido pra outros recriadores. E esse caso específico é só sugestão, coloque na sua listinha de coisas pro seu kit e tenta procurar as ferramentas do seu ofício comuns no seu período e região. Se não tiver um recorte, mas sabe trabalhar com algo, pega algum equivalente contemporâneo e dá uma camuflada e depois busca essas informações. Estude, estude, estude e estude. Estude.

Enfeites/jóias: Por último os "enfeites". isso é puramente estético, nada necessariamente funcional, mas acaba ornando com o recorte. Isso é coisa de por na lista, mas eu não tenho o que falar a respeito porque se não vou passar a vida inteira escrevendo e nunca mais vou ver a luz do dia, de tão extenso que é o assunto.

Jóias são sinal de status. É o que eu venho falando sobre a decoração das túnicas, dos sapatos, dos cintos, de tudo. mas isso é a decoração sa pessoa. É um broche, é um colar, uma coroa (por que não, senhor reizinho?) é uma colher de ouro ou seja lá o que for. Claro que existem broches pra prender capas, fivelas de cintos e afins, que todos tem, mas a regra é clara MAIS UMA FUCKING VEZ: não decore se não sabe o que vai fazer. E se você acha que algo sem decoração vai ficar tosco, ok, eles também achavam e NÃO USAVAM.

Digo isso de modo eloquente porque vejo principalmente no caso feminino uma necessidade de procurar os famosos broches pra prender os aventais e encher de contas de vidro e coisa e tal... E assim, nem toda mulher usava meio quilo de prata exposto no peito. Aliás, a esmagadora maioria não usava. Nem todo homem usava um cinto cheio de cravos de bronze com formatos bonitinhos. Nem toda pessoa usava martelos ou crucifixos no pescoço feitos de metais preciosos, âmbar, vidro e essas coisas.

É um contrasenso enorme um reenactor com um recorte super humildão aparecer com um Mjolnir de prata e contas de vidro bem expostos. É como um mendigo usando um Rolex original na rua. Não cola bem. Então tenha bom senso.

por isso eu digo que a primeira coisa a se fazer é definir uma classe social, ela te impõe limites, tal qual acontece hoje em dia e você fala "putz, só vou poder fazer minha túnica no mês que vem, porque esse tá apertado". Antigamente era igual e você não precisa gastar fortnuas pra ser um bom reenactor. Aliás, é mais fácil gastar fortunas e se tornar um exemplo de tudo o que não haveria no período.

Então sempre que for ter algum enfeite no seu set, seja uma cruz, seja um bordado, seja o que for, além de verificar se aquilo está de acordo com o seu período e região, veja se está de acordo com sua classe social. Um rei não usa fivela de ferro numa túnica surrada, um agricultor não usar seda púrpura com fios dourados.

E é isso. Talvez daqui a dois anos eu escreva de novo. Mas com a Vila Viking Brasil de portas abertas, acho que eu me empolgo e volto a escrever antes.