quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O conjectural: prós e contras ao criar peças "do nada"

Primeiramente eu acho necessário dizer que esse tópico seria também tratado no post anterior, sobre buracos e micro-recortes, mas como se extenderia de mais, achei melhor dividí-lo. Caso não tenha lido o texto anterior, recomendo que o leia antes desse, já que ambos conversam muito.

O que é "conjectural" dentro do reenactment? É tudo aquilo que "poderia" ser, mas não é. Ou seja, é uma peça inventada, sem um análogo imediato em fontes escritas, materiais ou representativas, mas que é feito de acordo com suas "primas".

Um exemplo bem simples que eu costumo dar é pensar em escudos. Se eu encontro cinco escudos entre 90cm e 93cm em uma localidade e na localidade vizinha eu encontro mais seis entre 85cm e 88cm, eu posso afirmar com certa segurança que existiam escudos de 89cm na região. Logo, ao fazer um escudo de 89cm, estou fazendo algo conjectural, já que ele não tem um análogo direto na arqueologia.

Outro motivo bem simples pra eu citar os escudos é que eles quase que 90% das vezes são conjecturais e ninguém faz alarde quanto a isso. Embora, é claro, existem menos implicações teóricas e práticas em aumentar ou diminuir 1cm de um disco de madeira do que em outros tipos de objeto/atividade.

A ligação deste texto com o do micro-recorte é justamente que o conjectural tapa buracos que acabam surgindo de um modo bem mais freestyle. Então se eu quero fazer uma representação 100% fiel a um achado específico e o único buraco que eu encontro é com que cor o escudo de madeira foi pintado, eu vou lá e faço uma pintura baseada em representações artísticas de época, mas mudando, por exemplo, o número de divisões no círculo de 13 para 12. O que eu acabei de fazer é conjectural. Em dobro, já que além de mudar uma forma reconhecida de pintura, eu ainda a aplico em um escudo que talvez tivesse algo bem diferente em sua face, afinal, dificilmente um escudo dinamarquês seria pintado com motivos gotlandeses.

Pode não parecer muita coisa, mas imagine que eu escolho um determinado túmulo e falo "estou recriando o esqueleto número X de um lugar Y" e pinto sua túnica de vermelho. Mas de repente aquele cara vivia num reinado de algum rei maluco que proibiu o vermelho das roupas por ser uma cor pecaminosa e ostentosa, ou porque só o rei e nobres tinham permissão de usar vermelho ou sei lá. Mas essa lei nunca chegou pra nós, que fique claro. Pois é, estou sem querer criando algo que talvez fosse proibido e que jamais aconteceria nesse prazo de uns cinquenta anos que estou tentando reproduzir.

E se a tal lei do vermelho tivesse chegado até nós, mas nunca tivesse sido traduzida, tirando por algum desocupado bielorrusso? Daí quase ninguém ia saber, eu faria aquele esqueleto, usaria a túnica vermelha, porque eu gosto de vermelho e daí um dia eu encontraria um reenactor muito manjador lá da Bielorrússia que me diria "ei, vermelho é uma cor proibida nesse seu recorte". Eu posso fazer duas coisas: primeira é trocar a cor da roupa, retingir, fazer outra, whatever. Segunda é dizer "é conjectural. Estou usando o homem X do lugar Y como molde pra reproduzir um homem do lugar Z, que é atravessando o rio e que tinha outras leis".

Parece um escapismo, né? Pois é. É. Mas e se você soubesse falar bielorrusso e tivesse lido a fonte original e realmente quisesse fazer um cara da localidade Z, de onde a arqueologia só tinha retirado livros ilustrados da época mostrando roupas vermelhas e não outra forma de cultura material? Porque vai que o rei Z, na mesma época, tinha criado uma lei proibindo o enterro das pessoas, só permitindo cremação? O que não pode é mudar em cima da hora pra evitar ser feito de desconhecedor do próprio recorte.

Isso cai no micro-recorte e como expandí-lo, que eu já falei no outro post, mas a escolha das cores, de acordo com o que era possível, permite que você mude ou edite o achado.

O conjectural, em outras palavras, é o "possível, mas não provável". Mas não o provável no sentido de probabilidade e sim no sentido de já ter sido ou não provado.

E quais são os problemas dessa prática? Um é que você está sujeito a ser descredibilizado no dia em que surgir algo que explicitamente negue seu recorte. Como a descoberta da lei do rei Y em bielorrusso. Outro é que você realmente precisa estudar cada detalhe e nem todo mundo tem a disposição, aptidão ou tempo pra isso. Sério, reenactment é um hobby e tem gente que gosta apenas da parte mais prática do hobby e não tem problema nenhum nisso, mas pra esses eu recomendo usar coisas mais comprovadas e de conhecimento geral, pra não ficar em saia justa. É complicado quando algum reenactor sem disposição pra estudo resolve fazer aqueles recortes mirabolantes super raros.

O problema de ter que estudar muito o que se faz é justamente o fato de ser humanamente impossível saber sobre tudo de uma época passada e ainda ser funcional na nossa. Eu posso entender sobre produção de armas e outros artigos de ferro na Era Viking, mas não entendo nada sobre confecção de barcos ou a melhor forma de abater uma ovelha. É normal. Assim como tem gente que entende muito de culinária e arquearia e não faz ideia de como curtir uma pele. Mas se você não tem conhecimento de alguma área, você pergunta pra quem tem. Esse é o principal motivo de formarmos grupos, pra que um dê suporte ao outro.

E qual a vantagem, afinal, do conjectural? Várias, desde que feitas com responsabilidade.

Pra começar, eu volto à parte do micro recorte. Lembram do Bockstenenman? Pois é, como disse, ao copiar tudo o que ele vestia e usava você vai se parecer com um homem do século XIV. Com UM homem do século XIV.

O que quero dizer com isso? Bem, eu sou ferreiro e é muito comum eu receber pedidos de gente querendo "uma espada modelo tal", mostrando uma foto de algum trabalho que já fiz. Ou ainda pior falando "quero essa". De novo, o que eu quero dizer com isso? Assim como hoje meu trabalho é artesanal e não existem duas peças iguais, mesmo com réguas e suas medidas precisas, materiais padronizados da indústria, ferramentas mais precisas do que três ou quatro escravos e o fato de eu produzir bem mais sozinho do que um ferreiro naquela época produziria (a velocidade do mundo é outra e eletricidade faz umas coisas beeeem marotas).

O fato é que não existia industria e controle de padrões em períodos da história antes do século XVIII. Isso quer dizer, caso ainda não tenha entendido, que não existiam duas peças exatamente feitas da mesma maneira e que muitas vezes tudo que um artesão tinha pra se basear para uma nova ideia era um relance de longe. Ou você acha que TODO FRANCO do século IX falou "vou fazer uma espada assim, assim e assado" depois de ir numa escolinha? Não. Ele viu uma e copiou do jeito que pôde. É como a eterna discussão das Ulfberht e suas infinitas variações de forma, escrita, materiais e todos aqueles erros de escrita bizarríssimos em qualquer espada com inscrições.

O problema de seguir exatamente um único achado sem contextualização é que você cai na lógica de padronizar uma época não padronizada. E a gente não faz isso nem hoje com toda nossa padronização.

Voltando ao Bockstenenman, já parou pra pensar que se só tivesse ele de achado de roupa do século XIV, todo mundo ia se vestir igual? Imagina num evento de batalha de Visby, por exemplo. Com um bando de Power Rangers multi coloridos, mas usando as mesmas roupas. Não, a época definitivamente não era assim.

Exemplo? Eu acho a Bíblia de Morgan um dos documentos mais fascinantes do século XIII. Não só como alguém formado em Artes Plásticas e cansado de tanto ler sobre História da Arte, mas como reenactor. Você vê que os ilustradores fizeram questão de mudar as cores das roupas de cada um dos homens desenhados, mudar detalhes nas armas, detalhes nas armaduras, detalhes em tudo.

É como os diversos padrões diferentes na Tapeçaria de Bayeux, que talvez representassem a mesma coisa pras bordadeiras que a fizeram, mas que provavelmente fossem códigos visuais pra coisas diferentes também.

Mas sim, dependendo do período a coisa fica mais nebulosa. É impossível distinguir algo real em estilos de arte animal germânica ou posteriormente os estilos nórdicos. Mesmo porque eles não serviam pra retratar a realidade anyway.

O ponto é que se eu pegasse a túnica de Bernuthsfeld, usasse o corte dela (não os retalhos, mas o corte geral de forma depois de montada) e fizesse uma túnica bem feita, não tem autoridade no mundo que diria que ela não é autêntica. Mas ela não seria réplica de nenhuma peça histórica. Ela seria conjectural. Só que pra isso eu preciso estudar várias túnicas do período, além da questão de contexto, pra ter bons argumentos na hora de explicar porque eu estou usando isso e não uma outra túnica qualquer.

E olha só: o cara que inventar uma túnica assim baseada em vários achados diferentes fatalmente conhece MUITO MAIS o recorte do que quem apenas replicou um achado sem estudar outras fontes. Como sempre, tudo esbarra em estudo no final.

Pra dar exemplos práticos do que é conjectural e o que é bosta de boi, pense em um escudo redondo "viking" feito de compensado. Mas não como o compensado moderno e sim como sugerido naas Gulaþing e Frostaþing. Não se tem achado de como isso era feito. Mas se você fizer dessa maneira, é conjectural. Se você fizer como o compensado romano, é conjectural. Se você fizer com o compensado moderno, não adianta se embasar em fontes, não é conjectural, é uma forma de baratear os custos de uma peça que quebra o tempo todo. E tendo consciência disso e estado disfarçado, tá ok.

Elmos do período viking ou um pouco anteriores. Se você faz um elmo "esferocônico", com quatro partes unidas por tiras e uma viseira que fique em qualquer lugar entre Vendel 1 e Kiev, é conjectural, porque as construções de todos são basicamente as mesmas, mesmo que de períodos diferentes. Fazer um elmo cônico (de uma só parte) com uma viseira é mistura. Não é conjectura, é invenção.

Qualquer armadura do século XIV que você encontre em uma efíge, ou pintura, ou manuscrito é conjectural. Principalmente quando você vê várias bolinhas pintadas em membros. Você não sabe como a peça é construída, mas você se baseia em alguns achados e faz esse chute. Mas inventar tudo só porque o resultado final se parece com a escultura, sem olhar outras armaduras da mesma época, é invenção.

O segredo é ver padrões na diferença. Isso permite que você crie algo autêntico, mesmo que não tenha um análogo imediato. Inventar por inventar é irresponsabilidade. Modificar achados arqueológicos sem conhecer outros paralelos é irresponsabilidade. Vender ou fomentar ideias e objetos sem entender aquilo que se está fazendo é irresponsabilidade.

Também é um bocado irresponsável sugerir que qualquer período da história deva ser representado apenas por uma parcela minúscula de resquício material, replicada infinitamente sem uma compreensão maior do que esse resquício poderia ser.

O conjectural deve sim ser incentivado, mas não se você ou seu grupo não tem maturidade dentro da atividade ou conhecimento específico pra inventar essas coisas. E claro, cada grupo possui uma política em relação a isso e alguns banem o uso de objetos desse tipo. Não tem problema nenhum nisso.

Mas dando exemplo da Era Viking uma última vez nesse post: é melhor ver cinco elmos esferocônicos conjecturais diferentes numa parede de escudos do que cinco réplicas do único elmo inteiro encontrado no período. inventar, nessa hora, vai com certeza ficar muito mais pareciso com uma visão da época do que ser completamente fiel à evidência material.