sábado, 7 de dezembro de 2013

O estudo, suas consequências e suas necessidades.


Olá, amigos!

Pois bem, o que seria uma semana se tornou algo como doze. E não haverá mais uma periodicidade definitiva por aqui. Isso, por incrível que pareça, consome mais tempo do que eu gostaria e tenho outras prioridades, sinto muito.

Como disse na última postagem, iria falar do reenactment e o estudo propriamente dito nesta. Antes tarde do que nunca, afinal.

Bom, já falei muito em postagens anteriores sobre a necessidade do estudo, sobre o porque do estudo, sobre isso e aquilo e blablablá com alguma coisa além. A questão de hoje é diferente. Se trata um pouco da relação com a instituição e do modo a se estudar e apresentar esses resultados.

Obviamente, cada pessoa estuda de um jeito e ensina de um jeito. Tudo é troca então, sim, se ensina mesmo sem querer. E esse é um outro ponto, aliás. Mas o caso que quero tratar é mais ou menos sobre que tipos de material ter como base ou como um recriacionista deve se portar devido à sua – acreditem, ela existe – responsabilidade.

Primeiramente, sobre o aprendizado:

Pois bem, quero fazer recriacionismo de algum período e não sei por onde começar. O que faço?

Muitos recriacionistas cometem o erro gigantesco de comprar todos os manuais básicos sobre algum tema x e com isso, leem a mesma coisa várias vezes sem nenhum aprofundamento e acham que realmente estão fazendo um grande negócio.

Manual que me refiro são livros como a série “Grandes Civilizações do Passado”, um bom material em português, mas que é para um público geral e não específico.

Vejam bem, não critico quem os lê ou quem gosta deles. E nem quem se sente seguro lendo apenas este tipo de material. Acho que é justamente por onde começa e, para muitos BONS recriacionistas, é também onde acaba. Porém são livros genéricos e tudo vai do seu objetivo como reenactor.

Antes de tudo, leia e veja se você gostou do período como ele é apresentado. Leia uns dois, pra ter uma noção do que um autor pode dizer que foi negligenciado pelo outro e compare. Se algo te chamar a atenção, pesquise, se não, passe pro próximo assunto. Não é crime dizer que não se interessa pela, digamos, produção de vidro anglo saxônica do século VI e que por isso não entende os processos nem a importância econômica disso. Muito pior é afirmar categoricamente que se tinha vidro na Suécia do século IX é porque foi comercializado com árabes e que não existia produção local, porque afinal, quem seria capaz de juntar areia e fogo pra fazer vidro longe do Oriente Médio e norte da África naquele tempo, não é mesmo?

Por incrível que pareça esse tipo de bobagem é repetida por pessoas – não só aqui do Brasil, mas no mundo todo – que possuem essa ideia superficialíssima do período que “estudam”. Porque folhearam uma revista de 14 páginas sobre determinado assunto e se dizem doutores.

Pois bem, as motivações de um recriacionista não são as mesmas de um doutor em história ou arqueologia. Mas existe uma responsabilidade por parte de alguém que recria saber do que se trata aquilo que diz recriar. Gosto da analogia de astrônomos e astronautas. Um estuda e graças a isso possibilita ao segundo ficar lá, voandinho de boa no espaço, mas o astronauta precisa saber que se tirar seu traje ele morre. E também precisa saber controlar os equipamentos que o engenheiro espacial fez e saber as leis da física que não se aplicam a ele quando está em gravidade zero e tudo o mais. A desculpa de ser um astronauta não o permite ser burro, pelo contrário. Mesmo que ele não saiba nem de longe tudo o que o astrônomo faz, ele precisa saber muita coisa.

O reenactor é um astronauta. No espaço sideral da recriação histórica é impossível manter suas condições vitais sem uma ajudinha dos astrônomos (que aqui no nosso caso são historiadores, arqueólogos, artistas e artesões que recriam peças, etc). Nós precisamos de estudos sérios porque eles nos dão segurança e credibilidade. Ou, como diria um grande mestre que tive na minha passagem breve pela faculdade de História, são esses estudos que nos legitimam.

Nós não temos o dever de ler fontes no original e uma infinidade de artigos acadêmicos sobre tudo o que acontecia no recorte que escolhemos, mas se quisermos fazer, por exemplo, uma pesquisa quanto à fundição de ouro na Grécia Clássica, é bom fuçar tudo a respeito das nossas dúvidas antes de gastar uma fortuna tentando pra dar errado.

Volto então a falar de manuais. Eles são necessários para TODO recriacionista, quando disponíveis. Po, eles comprimem diversos assuntos em um mesmo livro e você pode ter uma noção básica de tudo. Acontece que se você mergulha de cabeça nesse universo e se torna um fanático (como... eu) manuais não bastam. E você não pode se dar ao luxo de passar informações erradas ou meio lidas por preguiça. É muito melhor assumir que não sabe do que falar bobagem. Porém, ler diversos manuais da mesma coisa para se mostrar "entendedor" não fazem nada a você além de reafirmar o que você já leu no anterior.

Quanto à responsabilidade que assumimos ao recriar uma coisa, acontece que só de fazer e ser observado já estamos passando alguma coisa. E devemos tomar cuidado com o que fazemos. Um recriacionista não pode chegar no meio de um público dizer que aquela função que executa é a melhor do mundo e que era isso isso e aquilo, porque gostou ou leu um texto que falava SÓ sobre aquilo.
Para que entendam, eu sou cuteleiro. Obviamente leio muitos artigos que falam APENAS sobre a produção de lâminas no período viking. Se é um artigo que fala sobre aquilo, ele vai dizer a importância daquilo, sem necessariamente citar as infinitas outras profissões e isso vai dar a conotação de que as outras profissões, perto da produção de armas, são menores, irrelevantes e tudo o mais. Se eu não tenho um conhecimento amplo da coisa, posso me pegar acreditando nisso. Aí reside o problema. Imaginem eu dizendo que “o ferreiro na Era Viking era a profissão mais importante, porque o aço era isso e aquilo e a faca era a da melhor qualidade” e outras asneiras mais. Eu estou mentindo, baseado numa pesquisa incompleta da minha parte, que analisou um ofício em um contexto isolado. Eu não preciso saber tudo sobre os demais, já que eles não me interessam, mas devo saber o básico, saber em que contexto essa forjaria está inserida.

Todo reenactor precisa dos manuais porque eles poupam tempo nesse sentido. Eu estudo o tema, dentro dele, que me interessa. Além do mais, esse tipo de livro nunca é escrito por um cara só. Quase sempre são ajuntados de textos de diversos estudiosos sobre cada tema, organizados por um idealizador. Dentro da própria academia cada um se especializa em algo, mas sem negligenciar o contexto todo todo, mesmo que não entenda tudo sobre tudo. Em outras palavras, uma pessoa com pós doc em pedras rúnicas gotlandesas pode não saber NADA sobre quais peixes serviam de alimento na mesma ilha. Mas sabe que os gotlandeses pescavam e que tinham conexões comerciais e que eram economicamente privilegiados e tudo o mais.

Uma coisa que eu já vi muito em meus estudos é arqueólogo, por exemplo, que na hora de detalhar uma espada dá informações incompletas e que, para mim, são óbvias ou mesmo contrárias às descrições, porque eles NÃO SÃO conhecedores de siderurgia. E eles não tem a menor obrigação de ser. Na maioria dos casos, eles se abstém. E se a própria chefe do departamento de história, arqueologia e preservação da Universidade de Oslo deixa claro que não sabe algo, quem é o recriacionista f**ão pra dizer que sabe tudo e dizer que “vidro na Escandinávia com certeza era importado”?

Bom, o outro fator que queira falar brevemente aqui é uma continuação deste. Naturalmente, o astrônomo vira astronauta e o astronauta vira astrônomo. E misturam essas funções. Nada mais natural e nada mais desejável, embora não sejam todos que possuem vocação pras duas coisas.

Como disse, nem sempre o historiador possui conhecimento técnico sobre alguns assuntos. Natural. E aí surge o dilema: conciliar o estudo de antropologia, arqueologia, história, linguística e tudo o mais com mais essa área do conhecimento pra ontem oooouuuu chamar a ajuda de um cara que entenda deste assunto em especial, mesmo que em detrimento do resto? Em boa parte dos casos, a segunda opção é a mais escolhida. Por motivos mais que óbvios.

Uma dessas ocasiões é o estudo dos artefatos de Staffordshire. Pra muitos desses estudos a equipe de pesquisadores conta com recriacionistas ou artesãos especializados em recriar objetos dessa época. Isso gera uma compreensão muito maior para ambos os lados, de como as coisas eram feitas e consequentemente o possível valor que tais coisas tinham. Isso amplia o contexto, indica técnicas que eram usadas, as origens desses materiais, a qualidade de determinadas peças em detrimento de outras e por aí vai.

No caso de uma grande batalha, é possível saber em que proporções o que as fontes históricas nos contam é ou não verdade, se cabiam duzentas pessoas num barco, se uma espada podia realmente cortar uma pessoa em dois... Coisa que um historiador em sua escrivaninha não pode afirmar sem alguns “testes”, que caem na seara do reenactor.

Recentemente li um ensaio sobre arcos e flechas na Era Viking que me decepcionou, por exemplo, com uma hipervalorização da arma só possível pra quem nunca atirou com um contra uma parede de escudo colada em outra. Se ele tivesse ido atrás de estudos feitos por recriacionistas-historiadores, poderia ter apresentado uma argumentação bem melhor do que a que apresentou e por aí vai.

A Academia se aproveita desse “estudo de campo voluntário” em muitas ocasiões, pois ambos os lados só tem a ganhar com isso. E os envolvidos no reenactment se envolvem com a Academia pois ela traz informações que seriam inalcançáveis de outra forma. Astrônomo e astronauta. Sem um cara pra ir pegar pedaços da lua, não é possível estudar a composição do solo de lá. Sem um astrônomo pra dizer O QUE É a lua, o astronauta não teria o que fazer.

A diferença na analogia é que o recriacionista trabalha por conta própria, por questões pessoais e movido por pura curiosidade e pode focar seu estudo no que bem entender, negligenciando um aprofundamento em assuntos que não lhe importem.

Mas a responsabilidade é a mesma. Não dá pra dizer, como já vi uma vez um membro de um grupo europeu dizendo, que “Vikings criavam lobos como animais de estimação, não cães”, só porque ouviu algo parecido em alguma letra de música.

Nós tal como historiadores, temos um compromisso com a verdade, mesmo que seja uma verdade entre infinitas.

Abraços e até o próximo post.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O recriacionista e a instituição

Boa noite!

O tema de hoje será continuado na próxima semana, de certo modo, no qual falarei sobre o estudo propriamente dito, mas hoje falarei sobre a correlação reenactment/instituição. Por instituição eu me refiro com mais ênfase à ideia de Universidade.

Mais uma vez, vou aplicar o alvo da fala prioritariamente ao exterior por três motivos: a) no Brasil não há essa relação ainda, pelo simples fato de não termos recriacionismo (digo numa escala visível). Simples assim. b) apesar de podermos criar uma intimidade entre a prática e as Universidades através de pesquisas de extensão, há no meio acadêmico nacional muita gente que toma o reenactment como uma brincadeira sem seriedade. Há também o fato de muita gente ligada ao ensino formal, aqui, desmerecer o não formal, como “irrelevante” ou até contrário às suas intenções. c) por último mas não menos importante, há o fato de que algumas universidades só se proporiam a dar apoio à atividade da recriação histórica se essa história fosse um eco da nossa. O que de certa forma não está errado, claro, mas excluir o alheio é bem diferente de favorecer o próprio e aqui, por questões políticas vigentes, apenas alguns “alheios” são “próprios” (como o esforço público em tornar nossa matriz africana mais brasileira do que a indígena, só pra citar um exemplo).

Enfim, vamos lá.

A recriação (com i), além de ser recreativa (com e), tem também o caráter educativo, como já disse aqui no blog antes. Essa forma de ensino se dá, primariamente, no âmbito não formal, ou seja, um ensino não institucional, sem cartilhas pré-definidas, mas que ainda assim transmite algo.

Meu crime: sou artista, não historiador. Porém, cursei uma faculdade de História por algum tempo e a relação entre formalidade e informalidade nessas duas áreas é completamente diferente.

Na educação brasileira, apesar de estar revendo consideravelmente esta estrutura nas últimas duas décadas, há uma hierarquização das formas de ensino. Em primeiro lugar vem o ensino institucional, fechado, com sua ementa bem definida e tudo o mais Este é o chamado ensino formal (desculpem a repetição de termos, mas é necessária). À seguir vem o ensino não formal, com compromissos muitas vezes mais sociais do que educativos. Ainda assim, ele tem uma certa organização para que alcance suas intenções. Por último vem o ensino informal, diferente do anterior. Basicamente tudo que se faz é ensino informal se não entra nas duas categorias já citadas, podendo ser uma conversa com o pasteleiro sobre futebol ou ler o jornal sobre o clima.

Como disse, estamos avançando, mas nos meios acadêmicos de História ainda reina um pouco essa hierarquização (afinal, professores transmitem muito mais da sua própria visão de mundo a seus alunos do que se poderia imaginar). No meio da Arte isso é diferente, porque... Bem, porque artista é tudo louco, como diria o resto da população. Em breve, se nada de errado ocorrer, a educação brasileira como um todo perceberá a ferramenta que está deixando na gaveta.

E o que tudo isso tem a ver com o recriacionismo?

Bom, sendo uma modalidade não formal de ensino, tudo. Em muitos países há a integração dessas três esferas, pois as três se articulam continuamente na formação do indivíduo. Negar ou menosprezar alguma delas é, quase que literalmente, tirar uma perna de um tripé. Ou pelo menos encurtá-la, deixando-o desestabilizado.

Na Europa, a Academia (erudição, pessoal, não musculação) passou a adotar o recriacionismo como uma potente forma de atingir a população com assuntos que, de outra forma, ficariam meio “mal-explicados”.

Traduzindo: ao invés de deixar qualquer um disseminar um conhecimento de forma errada, causando uma desinformação tremenda sobre uma parcela da sociedade, a Universidade assume o papel de transmitir esse conhecimento de um modo, ao mesmo temo que atraente, confiável. É claro que no caso de um novo regime totalitário qualquer, isso pode e com certeza VAI dar merda, mas nessas situações, independe do não formal, daria, todavia.

Bom, se uma Universidade toma as rédeas da transmissão de pesquisas acadêmicas para o grande público, inevitavelmente você desmonta esteriótipos errados. Imaginemos essa situação ideal aqui no Brasil: Se houvesse, digamos, no Museu do Ipiranga, um evento cujo tema fosse a proclamação da Independência, com gente vestida como alguém do início do século XIX, mas com um ator fazendo Dom Pedro em cima de um burro de carga voltando de Santos, o ilustre e equivocado (mas belíssimo, pra sermos justos) quadro de Pedro Américo poderia ser, finalmente, encarado como uma interpretação romântica do grito e não como um quase-retrato, como alguns o enxergam.

Um evento desses seria algo visualmente fantástico para um público leigo que, “por osmose”, acabaria entrando no clima e inevitavelmente aprenderia algo sobre a história de nosso país. Com uma “tradicionalização” desse ato, digamos, todos os dias 7 de Setembro, viraria uma espécie de evento turístico que acabaria gerando mais interesse do povo como um todo por história, que levaria à leitura, à uma maior acumulação de conhecimento, que geraria mais senso crítico e blablabla...

Não digo que o reenactment é a solução da humanidade, óbvio que não, mas pode ser usado como um passo para uma valorização da cultura, sem demagogias politiqueiras ou valorização de determinados aspectos através da desvalorização de outros (como certas políticas nacionais que nos rodeiam atualmente).

No exterior isso ocorre. Os “Open-air museums” são presentes em diversos lugares na Europa. A encenação da batalha de Hastings é um evento aguardado por milhares de reenactors todos os anos. Mesmo museus “tradicionais” às vezes apresentam réplicas de peças de época (que por sua vez são, também, recriação histórica) que podem ser seguradas ou vestidas pelo público, geralmente para que tirem fotos, mas que os fazem ver como seria o original e tocar algo muito próximo.

Além disso, é muito mais interessante e divertido você aprender alguma coisa num museu através de atividades do que lendo placas e textos de parede. Esses são indispensáveis, claro, mas se você ficar curioso, provavelmente vai ler com mais vontade e aí se lembrará dele por mais tempo.

Para crianças (o clichê de “futuro da nação” é cai bem nesse momento) é ainda mais divertido, porque ao invés de ver um manequim, frio e estático dentro de uma vitrine, ela veria, por exemplo, um ferreiro martelando uma ferradura numa forja a carvão. Ouviria, sentiria o calor. Essa experiência dificilmente seria apagada da mente dela e mesmo que ela fosse trabalhar com TI, com certeza haveria um maior respeito por essa ou qualquer outra área menos “avançada tecnologicamente”, graças a alguma lembrança agradável (torcendo pra criança não enfiar a mão na brasa, claro, já que seu sentimento acabaria se invertendo...)..

E o que isso tem a ver com universidades em si? Bom, a maioria dos museus do mundo, independente da área de pesquisa, são administrados por universidades. O próprio Museu do Ipiranga é da USP.

É muito mais barato prum museu (e, portanto pra Universidade que o mantém) convidar recriacionistas para esses eventos e demonstrações do que treinar funcionários, contratar atores ou mesmo contratar profisionais especializados nessas áreas. O reenactor, assim, ganha uma boa área de atuação e um reconhecimento social como um agente formador e não apenas um excêntrico desajustado.

Apesar de eu, por exemplo, trabalhar como cuteleiro e gostar das tais dark ages, adoraria me vestir como um ferreiro colonial do século XVIII e mostrar pras pessoas como era a confecção de ferrarias de campanha (supondo que eu as soubesse fazer, claro. E eu com certeza não cobraria nada por isso se tivesse esse espaço. Claro, se uma instituição dissesse “preciso de você para tal dia”, a coisa muda de figura, mas se fosse um evento para recriacionistas, com um cronograma livre e tal, eu não estaria lá “à trabalho”, mas sim “por lazer”. E acredito que a maioria dos recriacionistas envolvidos com algum tipo de produção relacionada ao período que recria pensa da mesma forma.

Para o recriacionismo em si, por outro lado, acaba surgindo uma responsabilidade saudável. Se um museu tenta retratar um período, automaticamente ele irá tentar convidar os reenactors que tenham qualidade para tal e não qualquer um. Dessa maneira, irá chegar naqueles que conheçam o período através do estudo. O próprio museu, dessa maneira, pode disponibilizar suas pesquisas e acervo para enriquecer essa recriação, melhorando a qualidade da prática para não “sujar sua imagem”.

Assim surge uma interdependência: a instituição precisa de BONS recriacionistas e o recriacionista precisa de BOAS pesquisas (criadas principalmente por pesquisadores de universidades). Ambos saem ganhando, ainda que não haja um compromisso fixo de exclusividade em nenhuma parte.

E o público sai ganhando em dobro: aprende, interage, se diverte e consegue, diferente do conhecer ou entender, compreender por um momento um período deixado para trás no tempo.


Até a próxima semana.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A luta no recriacionismo histórico

Boa noite!

O assunto de hoje é um piso no calo de muita gente, embora infelizmente acho que os assuntos anteriores também são.

A postagem poderia ser resumida em "lutas, não necessariamente, são recriacionismo".

Explicando os motivos que me levaram a escrever isso:

Vejo algumas pessoas confundindo apresentações de batalha com recriação histórica. Vejo algumas pessoas chamando Battle of Nations de recriação histórica. Vejo algumas pessoas chamando batalha campal de recriação histórica e por aí vai a lista. Não, não necessariamente essas coisas tem qualquer ligação com a recriação histórica.

UFC não é recriação histórica e não há nenhuma dúvida quanto a isso, tal como o campeonato mundial de luta greco-romana também não o é, mesmo sabendo que as pessoas praticam wrestling desde que os primeiros animais descobriram que dá pra "prensar" o outro na parede. Se fosse assim, o simples fato de falar qualquer outra língua seria uma espécie de reenactment.

Pois bem, dentro desse "mundinho colorido" do reenactment, é comum voltarmos nossas atenções ao aspecto bélico das culturas do passado. Não porque sem elas não faríamos recriacionismo, mas porque é, simplesmente, divertido. Ao ir pra um festival como o Woling, Hastings ou Foteviken, lutar é a atividade mais "popular". No sentido de ser democrático mesmo: qualquer um pode chegar lá com o devido preparo prévio, pegar uma espada e bater nos amigos, sabendo que não vai morrer com isso e que vai extravasar pelo menos um pouco.

No entanto, esse "live steel", que é um nome comum dado à prática de lutar com armas de aço, não é próprio da recriação histórica. É apenas mais uma prática absorvida pelos recriacionistas. E também não é o mesmo que o HEMA, Stage Combat ou a batalha campal popular no Brasil, ou como o SCA.

Pra explicar um pouco, vou resumir (injustamente, pois o espaço é curtíssimo) essas práticas.

Live steel/buhurt: Imagine alguns caras com armas de aço, se batendo tendo algumas regras como parâmetro. Há uma certa necessidade de preparo físico, mas não tanto domínio de técnicas. Não é uma arte marcial, mas o resultado de uma vontade de se atacar com espadas e machados. O Battle of Nations (um sonho meu, assumo) não deixa de ser, em boa parte, um Live Steel. Nos EUA é até chamado de "Combate com Armadura" esse tipo de esporte. Veja bem, esporte não é arte marcial ou vice versa, mas muitas vezes um comporta características do outro. Apesar disso, algumas equipes do BoN não são apenas praticantes de Live Steel, mas sim de HEMA. E apesar de o Battle of the Nations ter sim um evento de reenactment em paralelo, o foco do evento é o campeonato mundial de combate com armaduras.

HEMA: Historical European Martial Arts. É exatamente o que o nome sugere. Assim como o Kendo está para o Kenjutsu e a Esgrima Olímpica está para a Esgrima Clássica, o Live Steel pode estar para a HEMA. Digo "pode estar" pois o Live Steel, como já disse, nem sempre envolve técnicas avançadas, é mais uma brincadeira que um esporte na maior parte dos casos, mas às vezes é encarado de forma bem esportiva, com regras claras e movimentos extraídos de grandes mestres. HEMA, porém, é uma arte marcial de fato. Ou melhor, várias artes marciais, construídas e reconstruídas através da leitura e estudo de manuais medievais e renascentistas e praticadas com seriedade em muitos países. Claro que em suas competições ela é tratada como um esporte, mas há muito mais nela, como em toda arte marcial: há filosofia, preparo físico, estudo e por aí vai. Por si só é uma recriação histórica, na mesma proporção que os mais tradicionalistas dojos de karate fazem, mas a vontade não é ilustrar um período e sim compreender um pequeno aspecto dele. Não importa como as armas eram feitas se elas não tiverem a qualidade. Não importa as roupas se elas não possuem o conforto e a resistência de hoje e por aí vai. É uma prática que se volta para si própria e para os praticantes e não para um público, ainda que tudo seja divulgado, entendem?

Stage Combat: Teatro, pura e simplesmente. Lutas ensaiadas ou, pelo menos, com pouca improvisação. O que importa é um "bom show". Obviamente, para um bom show deve haver verosimilhança e para tal, bons coreógrafos vão estudar os movimentos de bons lutadores. O principal atrativo do Stage Combat é que ele é realmente mais emocionante que uma luta "de verdade". Combates reais tendem a ser rápidos ou muito parados (paradoxo facilmente observável numa luta), enquanto no Stage há dramaticidade, enredo e tudo o que o teatro pode fazer. No Brasil temos um bom grupo que apresenta Stage Combat ao mesmo tempo em que estuda Esgrima Clássica Renascentista (que não deixa de ser uma forma de HEMA), a Frater Pendragon. Um exemplo internacional são os tchecos do Merlet com apresentações realmente de tirar o fôlego.

Batalha Campal/SCA: O SCA (Society for Criative Anachronism) e a Batalha Campal possuem preceitos similares, portanto falarei de ambos no mesmo parágrafo: divertir os competidores, proporcionar uma experiência mais ou menos segura, estimular o imaginário. Ambos usam armas "de mentira", geralmente de espuma, vinil ou coisas similares. A idéia é fazer uma espécie de jogo, com acumulação de pontos, vencedores e perdedores. Se você acerta alguém, ganha pontos. Se acerta um certo número de vezes, o outro "morre" e saí da brincadeira até a próxima rodada. Nesse ponto, bastante similar com alguns live steel. A diferença é mesmo nos equipamentos usados, já que os custos são bem menores e as armas são menos perigosas. Por uma questão estética costuma ser deixada de fora do reenactment e independente do peso e formato de suas armas, é literalmente impossível usá-las como se fossem armas reais, impossibilitando, também, um entendimento dessas últimas através dessas reproduções. Mas, e tudo tem um mas, é uma coisa divertida se você não cair em alguns mitos que alguns maus praticantes criam pra se legitimar (como "armas com o mesmo balanço que a real", "prática similar à da esgrima histórica" e blablabla, ainda que conceitos de estratégia sejam, muitas vezes, reproduzíveis na Batalha Campal).

Tendo essas "modalidades" em mente, o que o reenactor deveria escolher? Muita gente responderia "HEMA" ou "live steel". A batalha campal pode ser aproveitada. Como você, mãe, pai, irmão mais velho preocupado vai permitir que seu filho de, digamos, 7 anos de idade pegue uma espada de aço, ainda que cega, pra bater noutra pessoa? Em casa é uma coisa, mas envolvendo gente desconhecida a coisa muda. Não que eu ache que BC seja para crianças, mas é o exemplo mais claro que penso no momento. É uma brincadeira de longe mais segura e mais barata e cumpre seu papel de estimular o imaginário e a vontade de, um dia, ir pra uma prática mais perigosa e abrangente. Dentro do recriacionismo histórico, é algo muito pouco aproveitado, mas com um potencial significativo se souberem usá-la.

Pra quem tem mais disciplina e tempo, a HEMA é uma boa escolha, ainda que exija muito de seus praticantes. Não dá pra decorar o nome de Lichtenauer e falar que ele tem qualquer material sobre escudo grande redondo, como já ouvi gente dizendo por aí pra dizer "treino luta viking". Ou ainda dizer que pratica uma arte marcial milenar cujo nome é o nome de uma academia alemã qualquer, só porque era o nome do vídeo no youtube. HEMA exige tempo de leitura e estudo, ou prática em alguma academia (que inexiste no Brasil). Mas nossa terra é cheia de especialistas em genética que não sabem o que é uma célula...

Live Steel é, de longe o mais fácil, embora não mais barato, a se fazer. Contextualizando bem, é a forma mais convincente e reveladora sobre quase qualquer período da história (ou você acha que, tirando aquela elite militar reduzida, muitas outras pessoas sabiam empunhar uma arma que não fosse uma ferramenta?). De qualquer forma, como disse, luta não é necessário, então se a vontade é se divertir com a luta enquanto leva o resto a sério, não há a menor obrigação de se tornar um artista marcial. Pra isso o Live Steel acaba sendo mais importante que uma prática estudada como a HEMA.

Quanto ao Stage Combat, bem, o reenactment envolve uma bela parcela de teatralidade. Pra certos públicos, um show fight é muito mais interessante que uma demonstração de mestria marcial. Além disso, evita alguns problema no caso de um resultado já determinado, como a recriação de algum duelo histórico conhecido onde você não quer acertar a cabeça do seu oponente e ele continuar de pé porque ele é quem te mata. O problema é que exige um bom tempo de ensaio e é praticamente impossível em combates de massa.

Bom, tendo tudo isso em mente... Qual o sentido de um perneta, por exemplo, lutar? Seria algo insalubre pra todos que estivessem na mesma luta. Isso quer dizer que o perneta não pode ser um reenactor? De modo algum.

A luta, tal como qualquer atividade, é apenas uma faceta do recriacionismo histórico. É uma faceta que chama muita atenção, de fato, mas que não é a mais importante que qualquer outra. E não há nenhum sentido em se esforçar para ser um bom reenactor e utilizar elmos e espadas importados com tênis nike. No máximo, você está mostrando uma luta e não um período e se é só para tal, não precisa de todo o resto da indumentária.

Em muitos países esse é um mal que já foi sanado com o tempo. Aqui, como somos pouco mais que um embrião, ainda vai algum tempo, mas até que estamos caminhando rápido (agradeçamos à internet, que não era presente nos anos 80 na Europa).

Por hora é isso.
Até semana que vem!

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Purismo: Revendo esse conceito.

Boa noite!

Semana passada eu cheguei a comentar sobre réplicas e eu também queria voltar ao tópico da autenticidade. Desculpem se eu parecer tautológico.

Certa vez recebi uma certa crítica por fundamentar o meu grupo, o Escudo dos Vales, em conceitos "muito puristas". Vendo pelo lado de um brasileiro tentando fazer alguma coisa voltada ao medievo no nosso país, esse argumento faz bastante sentido.

Querendo ou não, nossa visão de Idade Média é um esteriótipo de barbárie e regresso da humanidade que perdurou durante mil anos. Independente de alguém pensar num merovíngio do século V ou num cavaleiro templário do XIII ou mesmo num torneio de justas do século XV, tudo é "cultura medieval" (um termo por si só um bocado babaca). E as pessoas aqui tem a visão de que todas essas coisas aconteciam ao mesmo tempo. É meio estranho se pensar que há meros duzentos anos não havia nem energia elétrica sendo usada pelo homem e cá estou eu, digitando num computador, enquanto aqueles pobres sujeitos ficaram estagnados durante mil anos...

Eu poderia voltar no post sobre o recorte específico e dizer tudo aquilo de novo, mas não é a idéia desse tópico.

O que a maioria esmagadora dos recriacionistas mundo a fora fazem é uma aproxmação, digamos, grosseira da realidade. Por mais pesquisa que haja, por mais rigor e parâmetros que escolhamos seguir, nós prestamos atenção em outros detalhes, como custo, segurança, viabilidade técnica e tudo o mais.

Uma espada 100% autêntica, pra começar, deveria ser afiada e em muitos casos de um aço não muito confiável, dependendo do período recriado. Só sair com ela na rua já geraria problemas, desembainhá-la seria pior e eu nem entro no mérito de usá-la, por motivos óbvios.

Um escudo quebraria rápido de mais e o gasto para repô-lo seria insustentável. Uma cota de malha feita com argolas rebitadas exigiria meses de trabalho contínuo e nosso tempo não permite isso. Fazer aço em casa à partir de minério exigiria um suprimento considerável de carvão e um espaço invejável - e sem vizinhos - ... E só pra colocar a cereja no bolo, metais preciosos são ainda mais preciosos nos dias de hoje.

Falando por fim das réplicas, há recriacionistas mais abastados que só utilizam estas. Há uma certa "corrente" entre os reenactors que opta por isso. Afinal, utilizando réplicas de um determinado lugar e tempo, simplesmente elimina-se muito do falatório. O que poderia ser mais autêntico que um "set" inteiramente recriado dos equipamentos do barco funerário de Sutton Hoo para um "rei/chefe saxão do século VII" além dos próprios artefatos restaurados?

Há algumas pessoas engajadas na produção de réplicas fiéis ou com poucas modificações (mais no tocante a matéria prima empregada) e estes ganham cada vem mais destaque no mercado do recriacionismo "de luxo", principalmente na Europa. O motivo é que além de preços altos que geram certa exclusividade, há o fator da qualidade: um cara que tem acesso aos originais em museus e tem um público que paga bem, obviamente tem mais tempo para estudar suas peças mais a fundo e fazer trabalhos cada vez melhores. Suas peças se tornam objeto de desejo entre colecionadores e mesmo instituições que enxergam no reenactment um meio de promover suas atividades (como museus, universidades, etc...)

Apesar de necessária para uma "legitimação" do reenactment como prática educativa e séria, obviamente não há a necessidade de que todos os reenactors ajam desta forma, se apegando a réplicas 100% fieis às originais.

Ou seja, num geral a recriação da maioria das pessoas não tem nada de purismo, se formos analisar essas pessoas de grana que utilizam peças folheadas a prata e ouro, espadas com pattern-welding/bloom steel (quando não um pattern-welding COM bloom steel), detalhes em osso de baleia e tudo o mais.

Acontece que sempre há outro lado...

Dizer isso tudo pode parecer um incentivo ao uso incorreto de materiais e coisa e tal. Por isso volto aos posts anteriores sobre recorte e autenticidade ou mesmo o último post, sobre os insumos disponíveis aos recriacionistas.

Para sintetizá-los: a pesquisa é altamente necessária para evitar anacronismos, mesmo que se invente algo que nunca existiu de fato.

Para ilustrar o parágrafo anterior da forma que acho mais clara no momento, volto a pensar num futuro reenactment de nossa era: pense em alguém querendo "construir" um carro típico dos últimos anos do século XX. Através das evidências ele vai saber o tipo de tecnologia e configurações usadas na mecânica, o design arredondado convencional e algumas marcas. Com isso ele poderia criar um Peugeot com um motor Volks (pois isso passaria desapercebido para a grande maioria de nossos contemporâneos), mas com o tradicional aspecto "felino" dos carros da Peugeot, ainda que inventado. Ele poderia colocar o estofamento com pele de jacaré se quisesse, pois sabe que isso é bastante customizável, com painel de plástico, ponteiros analógicos, cinco marchas e tudo o mais. Caso, hoje, víssemos tal carro, ele não nos pareceria estranho em nada. Isso é ser conjectural, mas autêntico.

Se o mesmo recriacionista criasse um carro com a mesma aparência felina com um emblema da jeep, nós estranharíamos. Mais ainda se o motor fosse um V8 num carro de aspecto popular. E se além disso tivesse traços quadrados e redondos ao mesmo tempo, nós veríamos um carro sem a harmonia típica deste período. Este recriacionista seria, portanto, um cara sem estudo profundo desse nosso tempo.

Um purista de fato, no entanto, iria pegar o Peugeot pronto, customizar o possível (como o estofamento interno, a cor, as calotas, insulfilm...) e deixaria toda a estrutura idêntica à de um original, embora talvez mudasse alguns tamanhos e proporções que, para nós, pareceria normal.

A diferença entre o segundo exemplo e os outros é óbvia, pois é alguém sem estudo e sem conhecimento que simplesmente cria o que lhe dá na teia parcamente baseado no período em questão. A diferença do primeiro para o terceiro é de que o primeiro, muitas vezes, precisa de uma base teórica bem maior do que a do último, uma vez que deve saber exatamente o porquê de cada detalhe de uma porrada de originais para criar um objeto inteiramente novo que pareça verossímil, enquanto o outro pode se permitir se focar e se especializar num único modelo e ninguém poderá dizer que ele não é autêntico.

Cada um tem vantagens e desvantagens: O carro inventado, infelizmente, nunca pertenceu ao nosso tempo, enquanto o carro refeito tende a criar uma padronização entre todos os "reenactors do futuro", coisa que não é algo que realmente existe em nosso tempo (digo todos tendo um Peugeot na garagem).

Logo, os dois são lados de uma mesma moeda. Todo o post pra ilustrar que o estudo do aficcionado é o que dá a liberdade ao recriacionista para inventar dentro de uma gama enorme de possibilidades e a única chance de realmente "entrar" na "mentalidade" da época, sentir o tal do zeitgeist, enquanto a replicação é a chave para alcançarmos uma aproximação maior com uma especificidade única e 99% segura dentro de um todo bem mais amplo. Uma se faz necessária da outra.

Enquanto isso o desconhecimento e desinformação devem ser deixados de lado, pois eles não nos aproximam do passado, apenas reforçam os esteriótipos, que geralmente são equivocados. Como a velha história de espadas de 10kg, vikings usando machados de duas lâminas, martelos de guerra como aqueles de jogos de RPG... E por aí vai...

Até a próxima semana.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A falta de insumos no Brasil

Boa noite a todos!

O tópico abordado hoje se atém à minha área de interesse (idade antiga, tardo-antiga, medieval e até certo ponto na renascença), embora acredito que para outros períodos a situação não seja tão diferente.

Por insumos, me refiro ao mercado disponível para o recriacionista, ou seja, o que há de oferta nacional para construirmos nossa recriação.

Há um mito popular entre alguns de que o reenactor faz todas as suas coisas ou que ele deve se esforçar para tal. Balela. Assim como trabalhar pode ser parte do reenactment, comprar também pode. O comércio é uma das atividades mais antigas do Homo sapiens.

Porém, onde e de quem comprar?

Essa pergunta é o grande tormento dos recriacionistas brasileiros. Infelizmente nosso país carece, muuuuuito, de produtos de qualidade para este tipo de público. A maioria esmagadora dos artigos medievalescos aqui são voltado ao público fantástico, não um público que busca autenticidade. Notem que não estou colocando defeito nesses artigos nem dizendo que são ruins, muitos são belíssimos e extremamente bem confeccionados, mas fantasiosos.

Industrialmente, obviamente, não temos nada. Portanto, como a maioria dos que vendem vendem produtos artesanais, há uma grande chance de customização, o que permite que haja autenticidade.

Um desses vendedores/artesãos é o responsável pela Hersir Store que além de ter uma produção em couro com a mesma qualidade da que temos no exterior, também importa outros artigos de lojas especializadas lá de fora. Além dele, temos algumas pessoas que trabalham com artigos especializados como sapatos de época, roupas e alguns acessórios, ainda que a maioria desses pouquíssimos faça mais para uso particular.

Só devemos ficar atentos com alguns artesãos que "se intrometem de mais" nos nossos projetos e inventam coisas que apesar de ter uma inspiração histórica, tendem pro lado da imaginação sem mais nem menos, tornando-se um gasto inútil de dinheiro.

E falando em gasto inútil, o maior gasto ao se fazer recriacionismo histórico de qualquer período que envolva beligerância, sem dúvidas se encontra nas armas e equipamentos de proteção. Gasto inútil não pelas armas, mas pelas porcarias que existem no mercado. Apesar da febre das cotas de malha, que são bastante presentes até no Mercado Livre, armas ou mesmo armaduras feitas com placas/chapas são raras. Neste último caso, temos alguns artesãos, como eu mesmo (merchand pessoal não é crime), a Guilda dos Armoreiros e o Giuliano Armaduras. Já tive o (des)prazer de encontrar alguns outros que vendem "proteção e durabilidade" com chapas com menos de 0,5mm (o suficiente para te proteger, talvez, da chuva, mas não mais que isso).

Há também o problema de "réplicas" que não são em nada iguais às originais, tirando um traço ou dois, sendo que uma réplica deve, pelo menos, ter proporções e formas similares à original, mas isso é um assunto para outro tópico.

Quanto à vilã dos bolsos (de forma absoluta e não só para o reenactment, mas também para a esgrima ou HEMA), de forma categórica, hoje, agosto de 2013, afirmo que não há no mercado nacional quem produza boas espadas a preços acessíveis. Ponto.

Referente a este parágrafo anterior, faço algumas considerações: Há boas espadas SIM e também há espadas a preços acessíveis. Os dois juntos, anda bastante difícil. Eu sou cuteleiro, inclusive já fiz três espadas e tirando uma delas, que foi uma espada curta e como tal demandou muito menos trabalho do que uma longa, ficaram uns belos lixos. A última inclusive quebrou no último sábado graças a um problema de revenimento.

Recentemente tenho visto alguns "espadeiros" fazendo cocôs de ferro e alegando serem armas. Como espadas são ótimos tacapes. Há um ferreiro por aí que se orgulha por suas espadas pesarem absurdos dois quilos (espadas de um determinado tipo que deveriam pesar em torno de 900-1200g). Há outros que utilizam aço 1020 (um material comumente encontrado em ferro velho, com baixo teor de carbono) e dizem que a lâmina é "real". Nem mesmo alguns que utilizam a famosa "mola de kombi" são realmente confiáveis, porque apesar da qualidade do aço, é o tratamento térmico que determina a qualidade da espada pronta. Eu utilizo o mesmo aço dessas molas milagrosas (embora eu os compre virgem e não reciclado, de fato, de um kombi) e veja só, a espada quebrou porque inventei de fazê-la sem as devidas ferramentas.

Espadas, para serem feitas, exigem uma infraestrutura e um conhecimento de siderurgia muito mais avançados do que para se fazer simples facas. E quem possui esse conhecimento e ferramental com toda a certeza não fará uma peça por um preço qualquer, a menos que tenha a condição de fazê-las de forma "semi-industrial" ou algo assim, coisa que poucos cuteleiros profissionais tem interesse em fazer. No Brasil, nenhum que eu conheça. No exterior há um cara chamado Paul Binns, que faz lâminas baratíssimas para os padrões de quem recebe em libras, ao mesmo tempo que faz lâminas caríssimas "artesanais".

O problema com cuteleiros profissionais é que, apesar de conhecerem a siderurgia, terem ferramental e algum embasamento, poucas vezes eles entendem sobre espadas no Brasil. Quando entendem é de um ou outro tipo muito particulares e mais "vendíveis". E geralmente fazem peças mais pesadas e desbalanceadas do que deveriam, apesar de lindas e afiadas.

Sendo assim, por hora, nos resta importar, sujeitos a variação do dólar, taxas abusivas de importação e impostos inventados a bel prazer dos órgãos responsáveis, já que ainda assim é melhor do que comprar espadas de trezentos reais feitas em ferro comum e sem têmpera...

Por outro lado, dois anos atrás não tínhamos nem mesmo isso. E de lá pra cá surgiram excelentes profissionais. Isolados, mas fiéis à pesquisa histórica. O cenário é de otimismo. Quem sabe em breve não teremos um bom mercado em nosso país?

Enfim, até a semana.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Reenactment made in Brazil

Boa noite!

Como percebem, hoje é terça e não segunda. Esqueci de postar ontem mesmo, mas a vida segue.

Bom, muitas pessoas dizem não haver sentido em recriacionismo histórico no Brasil. Essa é a pior asneira que já ouvi.

Primeiramente o reenactment não está vinculado a um lugar específico, mas sim com QUALQUER lugar específico. Para fazer claro, no primeiro post deste blog citei sobre a Segunda Guerra Mundial e Guerra Civil Americana. Inclusive postei fotos desta última.

Como é óbvio, a guerra civil americana não aconteceu na Europa e talvez não tenha muitos adeptos por lá em termos de recriacionismo histórico, mas nos EUA é bastante comum e conta com inúmeros entusiastas.

Aqui, no entanto, não há um interesse do público em geral pela história. É pelo menos uma opinião minha, há quem apresente argumentos para o contrário, mas vamos lá.

Como desafio, eu adoraria ver um grupo de recriacionistas brasileiros, recriando, sei lá, as Bandeiras, se inspirando em personagens como Domingos Jorge Velho ou Raposo Tavares. Com seus trajes e costumes que não eram nem portugueses nem indígenas, sua cultura particular e tudo o mais. Acontece que somos ensinados desde crianças (a não ser, talvez, no estado de São Paulo onde, por outro lado, pinta-se uma imagem heróica) que os bandeirantes eram sanguinários matadores de índios (ainda que muitos nem soubessem falar português...). Independente da versão, são personagens históricos importantíssimos para o nosso país e deveriam ser melhor estudados. Não no dilema "eram bons ou maus", afinal, eu gosto de "recriacionismo viking" e é impossível dizer que eles eram bacanas quando estavam invadindo e saqueando (pra não usar termos mais fortes).

De qualquer forma, a história se trata da humanidade e não devemos atribuir juízos universais para todos os indivíduos de um certo estrato social. Ou seja, mais do que tentar limpar a imagem de alguém ou deturpá-la, o mais importante é retratá-la. E que os que absorvem as informações formem suas opiniões. Posições ideológicas devem se ausentar da recriação (embora, tal como num estudo acadêmico sobre história, isso é impossível no todo).

Desta maneira, no Brasil seria sim possível um reenactment de qualidade sobre nossa própria história, como retratar a escravidão, os engenhos de açúcar ou os contatos entre europeus e nativos. O grande desafio é fazer isto de um modo honesto. Falo isso porque há muita desinformação sendo vendida como verdade na historiografia brasileira (principalmente aquela destinada para crianças e adolescentes) e ir de encontro a essas verdades ou desmentí-las é algo complicadíssimo.

Outro ponto que acho justo abordar é o próprio recriacionismo medieval no nosso país. Há quem negue suas condições, uma vez que "não tivemos Idade Média". Pois bem, Argentina, Chile ou Estados Unidos e Canadá também não e lá estão eles, com bons grupos, com boas pesquisas e tudo o mais.

De qualquer forma, também temos uma matriz cultural vinda da Europa, além de nosso berço nativo e nossas influências africanas. Já que é assim, por que não aproveitá-la?

Dizer que um brasileiro não pode fazer um recriacionismo histórico de um período europeu é um atestado de jumentice tão acentuado quanto dizer que alguém não pode praticar karatê sem ser nipo-descendente. E dizer que nós não podemos praticá-lo por não ter nada a ver com nosso contexto seria como afirmar que a capoeira é algo que devesse ficar na África. Entendem a gravidade?

Portugal fica na Europa e nós falamos português. Isso já seria o bastante para "provar" meus argumentos, mas para quem não entende da coisa, a expansão ultra-marina portuguesa ocorreu justamente no término de um período marcadamente feudal. Aliás, como consequência deste. Podemos ter "surgido" enquanto território mapeado por um homem branco aleatório qualquer no século XVI, mas nossas raízes são mais antigas.

De qualquer forma, o recriacionismo busca incluir o passado no nosso presente, de forma educativa. Como faríamos isso excluindo os participantes apenas por não compartilharem um passado direto com a coisa?

Bom, esse é um assunto que renderia posts e mais posts se eu quisesse, mas vou me ater a poucos parágrafos, porque o realmente fundamental já foi dito e eu transmito a síntese em uma frase: Recriacionismo é uma retratação cultural, não étnica ou territorial, de um passado qualquer na história da humanidade. Logo, qualquer um pode retratar qualquer coisa, desde que tenha a vontade e o conhecimento para tal.

Até próxima semana.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Autenticidade: Não se trata de frescura, mas sim de recriacionismo

Boa noite, pessoal!

Bom, o tópico de hoje aborda o grande “vilão” do recriacionismo histórico: a autenticidade (ou “historicidade”).

O que é ser autêntico ao se fazer reenactment? Bom, certamente não é ser único e inovador, muito pelo contrário. O “autêntico”/”histórico” é justamente se manter fiel ao seu objetivo. Ou seja, utilizar objetos que, se fossem transportados para o período e local da história que visam recriar, não causariam estranhamento aos que lá viveram.

Claro, isso nem sempre é possível. No caso de alguns períodos, como o que eu e meu grupo tentamos recriar, somos obrigados (por necessidades e bom senso) a utilizar equipamentos que não existiam na época em questão, como armas embotadas e feitas de forma “não ortodoxa”, luvas e braceletes de proteção, escudos de compensado, etc...

Mesmo assim, esses objetos buscam a autenticidade na medida do possível. Por exemplo, uma espada não precisa, obrigatoriamente, ser feita através de forjamento, com aços “caseiros” e tudo o mais para ser autêntica, desde que apresente um estilo que seja próprio do período e região a qual tenta se encaixar. A lâmina também, preferencialmente, deve ter um tamanho, peso e formato possíveis, mas com algumas diferenças (como o fato de ser embotada). Isso permite que o recriacionista “sinta” a espada como ela deveria ser e assim possa explicar pros outros esse entendimento.

Outro exemplo é o uso de algumas proteções para alguns períodos. Apesar de alguns não existirem ou não serem usados em algumas épocas para em atividades bélicas, são fundamentais para a salubridade de algumas práticas que o reenactment acaba envolvendo. Nos recriacionismos medievais o combate é comum e sem a devida proteção, com o perdão da palavra, daria merda.
Assim, ainda que o equipamento não condiga com a realidade, é imprescindível. Nestes casos, deve haver um esforço para que sejam “feitos à semelhança” do período. Não é porque está “errado” de qualquer forma um guerreiro saxão do século X usar uma luva de proteção na mão da espada que ele vai usar uma luva de boxe ou uma manopla articulada gótica. Ele pode reforçar uma luva com couro, cota de malha ou mesmo “camuflar” uma luva qualquer. O ideal seria não usá-las, mas perder dedos, apesar de “histórico”, não é e nunca foi divertido.

Qualquer objeto, assim, tem a obrigação de se parecer autêntico. Existem objetos que hoje são muito mais caros do que de fato seriam no período recriado e, portanto, podem ser feitos de uma maneira alternativa convincente (como usar vidro vermelho ao invés de granada para reproduzir técnicas de cloisonné, ou costurar com uma máquina ao invés de à mão, para exemplificar). Embora a maneira original deva sempre ser preferida, essas alternativas viabilizam a prática. Acontece que em alguns pontos é estúpido pensar em alternativas, como usar cola ao invés de costura (que é algo perceptível ao olhar e bem menos resistente), utilizar tecidos e cores impróprias para a época sem uma boa justificativa, utilizar sintéticos ao invés de naturais, etc. Para um olho mais atento, até a diferença do tecido usado torna-se gritante.

Para se ter uma noção bem clara do que é ser autêntico, imaginem alguém, daqui quinhentos anos, querendo recriar nosso tempo. Se a moda no futuro for tecido de pêlos de cachorro, eles não poderiam usá-los dizendo que nós nos vestíamos tipicamente assim. Também poderiam inventar carros baseados nos nossos, não estariam totalmente errados, mas não poderiam, por exemplo, criar carros de cinco rodas, só porque viram um triciclo e acham que a numeração ímpar é válida. Também não devem andar todos de triciclo por ser mais barato (digo no futuro, provavelmente), já que não é o que é visto em nossa época. Por isso há a necessidade do estudo. É importante saber o quão comum era uma coisa antes de usá-la. E se for uma peça “única”, ter consciência disso pro caso de alguém levantar a pergunta, já que às vezes pode haver no público que observa um evento recriacionista algum cretino especialista no assunto que vai adorar provar que alguém está errado. Ou seja, a menos que nossos descendentes façam, por exemplo, um grupo de reenactors de um moto clube de triciclos, esse tipo de veículo seria a minoria, mas com a “desculpa adequada” do motoclube, estaria “liberado”.

Usando a mesma linha de raciocínio, imaginem alguém tentando demonstrar como seria o “executivo” padrão de nosso século. Caso todas as gravatas e imagens tivessem desaparecido exceto as com estampas cômicas, não seria errado que eles as usassem, pois saberiam que os executivos usavam gravatas e tendo apenas uma dos Simpsons à mão, seria uma visão aproximada da realidade, ainda que “errada”. Isso é importante ser dito pois, em muitos casos, nós nunca saberemos como um povo se vestia de fato, mas tendo alguns achados, podemos nos basear neles com segurança, ainda que na época fosse uma exceção.

Isso nos informa uma verdade desastrosa para quem não estuda com afinco: mesmo um aficcionado, estudioso, phd em arqueologia pode estar completamente equivocado, então pense naquele que apenas “viu uns filmes/seriados” ou “viu umas fotos legais”.

Como se não bastasse a atenção a cada detalhe, o pesado estudo e o risco de novas descobertas acabarem com toda a diversão, há ainda o problema de que você, num recorte específico, jamais mostrará de fato uma época por completo. Usando novamente o exemplo de um futuro reenactor do século XXI, seria possível um traje com elementos típicos do público fã de música sertaneja, mas usando uma camiseta do Metallica e uma corrente de ouro no pescoço. Ou ainda que fosse um completo “roqueiro de uniforme”, usando exatamente os mesmos trajes que alguém num grande show, ele só mostraria apenas uma faceta minúscula da sociedade na qual vivemos (e mesmo deste recorte que ele tentaria recriar), não podendo dizer “é assim que se vestia um fã de heavy metal no século XXI”. E se ele dissesse “um típico fã”, apenas deixaria a frase menos afirmativa, mas mesmo assim insuficiente.

Como fica claro, a autenticidade “mata” a criatividade. E esse é o preço que se paga pelo bom reenactment, mas é altamente necessário para que não caiamos na fantasia (que não é problema algum se for esta a intenção, mas se torna um problema, tipo quando você quer uma capivara mas só consegue um porquinho da índia, que pode ser legal, mas não é a mesma coisa). O reenactment tem como intuito principal ilustrar algum período específico e não inventar um tempo-espaço somente “influenciado” pela realidade.

Diversos outros exemplos poderiam ser citados (e percebo que numa terra onde temos milhares de reis - como Xuxa, Pelé, Roberto Carlos, para não citar outros -, eu estou quase assumindo o reinado dos exemplificadores), mas a postagem já se alongou muito e terminarei aqui.

Caso queiram algum tópico mais específico, basta comentar pedindo.


Até a próxima!

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A importância de um "recorte" específico

Boa noite!

Uma semana se passou e acho que farei os posts semanalmente. Assim fica mais fácil de administrar e o blog não morre em um só mês com tantos assuntos.

Mas vamos ao que interessa, o tema de hoje é algo que eu e alguns amigos chamamos de "recorte", embora possa haver uma boa centena de termos para o assunto, como uma "caracterização específica", "localização espaço-tempo", "foco", "período de interesse" e por aí vai.

O recorte nada mais é que uma escolha do recriacionista a cerca do que ele de fato deseja recriar. Não basta dizer "faço reenactment viking" ou, mais genérico ainda, "medieval reenactment". Por que não? A Idade Média, oficialmente, tem mais ou menos mil anos. Só a Era Viking tem quase 300. A primeira acontece, teoricamente, em toda a Europa e a segunda também, embora a tratemos como exclusiva às regiões setentrionais e mais ocidentais do continente.

Agora faço a pergunta: é possível imaginar um espaço tão vasto e um período tão longo com uma uniformidade, seja em qualquer aspecto? É ingenuidade ou, desculpem-me, burrice acreditar que "medieval" ou mesmo "viking" sejam adjetivos específicos, isso sem entrar no mérito da discussão sobre a etimologia e usagem do termo viking em si, que é alvo de pesquisas desde o século XIX (como tudo, praticamente).

Assim sendo, ao se recriar um período, é fundamental fazer um recorte dentro dele. E quanto mais específico, mais verossímil a recriação será.

A especificidade é um negócio chato, já que nunca será real. Dificilmente vemos um reenactor que queira retratar um camponês ou fazendeiro, embora esses fossem a esmagadora maioria das pessoas de antigamente (e em alguns lugares, até hoje). As pessoas tendem a desejar sempre "ser o fodão". E isso é natural. Qual é a graça de se empenhar numa prática pra usar trapos sujos? A regra hoje é, indubitavelmente, a exceção de outrora. E espera-se que os recriacionistas trabalhem com o típico e não com a exceção. Então como fazer?

Aí o recorte ganha sua força. Ao se retratar "um nobre carolíngio da segunda metade do século IX", certamente você não está trabalhando com o típico homem carolíngio, mas com um modelo que era minoria. Mas você deve retratar sempre o "típico nobre carolíngio da segunda metade do século IX". Assim você pode dar uma noção de como era essa especificidade. Entendem a jogada? Um recorte bem fundamentado, ainda que específico, é legitimado. Já que o "típico homem carolíngio", enquanto este período durou entre os francos, é um conceito mutável em questão de décadas.

"O típico viking" também não existe, pra demonstrar a ilusão que alguns possuem. No final do século VIII certamente eram saqueadores navais que cultuavam deuses pagãos. No século XII-XIII, a Escandinávia inteira já era cristianizada e o próprio termo "viking" passou a ser usado, inclusive, para cruzados.

Desta forma vemos que há uma grande enganação ao tentar retratar o "típico", pois o típico é uma coisa meio volátil. Mas o "típico-específico", apesar de parecer uma contradição semântica, é o terreno da recriação histórica.

Veja bem, se você usa um elmo suéco do final do século VIII, uma espada norueguesa do meio do XI e trajes com adornos saxões do século IX, você não está representando NADA que existia no período. Seria como dizer que um brasileiro do século XX usa chapéu de cangaceiro, walkman, bombacha e gravata, só porque todas essas coisas existiram nesse século no Brasil.

Por isso é importante escolher esse recorte, pois apesar de retratar uma minoria, você recria uma minoria "passível de existir" e não um ajuntado genérico que causariam um bug mental na cabeça de quem o visse naquele tempo e lugar, já que muitas vezes (e isso ocorre até hoje), as pessoas se identificavam por códigos culturais e sociais bem estabelecidos, que indicavam sua origem, status e até mesmo suas filiações ideológicas e familiares. Uma mistura deliberada desses códigos gera uma incoerência terrível.

Claro, uma certa flexibilidade é sempre útil, já que como direi no meu próximo post, é impossível saber, de fato, como um período mais "remoto" era. No entanto devemos, caso queiramos fazer um recriacionismo no mínimo decente, buscar essa verossimilhança. Do contrário, poderíamos simplesmente usar kilts e coturnos militares, com um cocar de índio norte-americano e falar "sou um recriacionista da Idade Moderna".

Enfim, espero ter elucidado algumas questões (e, é claro, gerado outras).

Até segunda que vem!

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Recriação x recreação

Boa noite!

Como o título da postagem sugere, hoje falarei um pouco da recriação e da recreação.

Para não dizerem que estou dando a minha visão da coisa, vou colocar o significado dessas palavras segundo o dicionário (para confirmarem eis o link).

Recreação:
s.f. Interrupção do trabalho para descanso e higiene mental.

Recriação, derivado do verbo recriar:
v.t. Criar de novo.

A diferença não é nada sutil, apesar da grande confusão que muita gente acaba fazendo.
Bom, vou direto ao ponto, para não acharem que estou tratando de um erro de escrita.

A recreação é uma prática lúdica qualquer, um momento para descontrair e se divertir. Relaxamento seria um sinônimo ideal do conceito que estou tentando formar aqui.
O recriacionismo Histórico, ou Recriação Histórica pode, sem sombra de dúvidas, ser uma espécie de recreação. Mas não o é pura e simplesmente.

A confusão que existe no meio nacional, onde a palavra "recriação" (ou recriacionismo) é derivada do português de Portugal e do espanhol da Espanha (onde o nome não é reatuamento ou reatuação, como poderia parecer lógico), vem do fato de muitos não se atentarem ao significado do verbo. Como já dito, criar de novo. Ou seja, só se recria o que já foi criado, mas na prática a realidade é outra.

As pessoas chamam, erroneamente, muitas coisas de recriacionismo ou reenactment. Inventam roupas, decorações, acessórios, estilos de lutas e até armas e armaduras e as chamam de recriações. Quando não o são. São criações genuínas, não cópias.

É isso que tira o aspecto recreativo (com e) da recriação. A recriação está presa a uma série de regras para que possa ser verdadeira e a regra número 1 é a de que se está recriando e não criando. Se assim o fosse, seria chamada de Criação ou Criacionismo. E mesmo na língua inglesa, onde o reenactment acaba surgindo mais vezes, há este "re". Na verdade em qualquer língua ele existe, mesmo que tenha outra aparência. Isso faz o recriacionismo ser menos recreativo, claro, já que demanda trabalho e uma certa falta da tal "higiene mental" supracitada.

Para dar exemplos, que facilitam a compreensão de todos, se alguém seguir todas as descrições de Tolkien ou do George Martin e à partir delas se juntar com outras pessoas para tentar viver a Terra Média ou Westeros, não estará fazendo o que se chama de Recriacionismo, pois são obras fictícias. Pasmem, mas mesmo que alguém siga as descrições de Bernard Cornwell, estará se baseando em pura ficção, por mais fundamentada na realidade que seja.

Se alguém copiar as armas e armaduras de filmes e seriados, também não estará fazendo reenactment, mas sim um cosplay de alta qualidade, pois o reenactment, por definição, é "historical reenactment". A menos, é claro, que essa pessoa quisesse criar uma modalidade totalmente nova e chamá-la da maneira que bem entendesse. Mas daí seria mais inteligente criar um nome novo para não confundir os leigos ou SE confundir quando a necessidade surgisse (como buscas no Google. Um só termo para duas coisas distintas sempre é ruim no Google).

Mas aí é que está, se vestir de Harry Potter na fila do cinema não é recriação, mas é, sem sombra de dúvidas, recreativo. Provavelmente deve ser divertido para quem o faz, mas é uma prática distinta.

O intuito desta postagem não é desmerecer aquilo que não é recriação, mas apontar as diferenças. Da mesma forma que há quem goste de pick-ups, há quem goste de sedans, um não é melhor do que o outro, são apenas diferentes.

No Brasil temos muitos entusiastas que gostam de filmes de fantasia ou jogos de videogame. Ou que lêem obras incríveis de ficção histórica. Assim como um historiador provavelmente não entende muito de física quântica porque nunca estudou isso a fundo, algumas pessoas manjam tudo sobre cenários fantásticos sem saber ou, talvez, sem se interessar pela realidade. E qual é o problema?

Absolutamente nenhum! Cada um que faça sua recreação da forma que lhe apetece, todos tem o direito de se divertir, seja se vestindo de um guerreiro da elite visigoda de Toledo do final do século VII, de um anão da Erebor da Terceira Era da Terra Média ou de capitão caverna. Mas cuidemos com o i na conversa, pois alguns podem se perder com as definições e jamais atingir nenhum dos dois lados dessa briga semântica.

Nos próximos posts eu usarei alguns termos explicados nessas primeiras publicações insistentemente, então seria bacana se acompanhassem quando desse, pra não se perderem ou confundirem.

E, se tiverem alguma sugestão de tema ou assunto, podem mandar nos comentários.

Até a próxima!

sábado, 27 de julho de 2013

Primeira postagem

Boa noite!

Venho por meio deste blog descrever uma prática ainda em estágio embrionário no Brasil. Embrionária pois a ideia já existe, o contato, pelo menos digital, já existe, mas a prática acontece num nível tão ínfimo que é quase inexistente.

No blog falarei sobre meus interesses particulares, no caso, a recriação dos períodos entre os séculos IV e XI, primariamente, ainda que eu possa comentar em algumas postagens outros assuntos.

Primeira postagem e o assunto não poderia ser diferente: O que é esse bendito recriacionismo?
Apesar de ser o assunto em questão, a resposta não será dada, pois é complicada de mais pra alguém ter saco de ler de uma só vez, julgo eu. Também não há como pensar num “curso” ou “aulas” de recriacionismo, por motivos que explicarei à seguir.


Pois bem, vou começar com o simples: definições.

O Reenactment, ou “re-atuação”, é o que o nome diz, agir de forma que já foi feita antes. Parece uma descrição babaca, mas é primordial para o entendimento da prática. Sendo assim, é necessário, acima de tudo, saber como se agia para “reatuar”.

Esse conhecimento só é obtido através de muito estudo ou pelo menos muita dedicação a levar a sério o estudo de outros. Estudos estes que sempre podem ser questionados na eterna dialética dos meios acadêmicos.

O recriacionismo pode ser, de modo geral, aplicado a qualquer contexto histórico. Contextos mais distantes geralmente possuem fontes escassas, mas uma maior liberdade por parte do recriacionista ou reenactor, enquanto os mais próximos são mais ricos em detalhes, mas trazem uma série de complicações, uma vez que ainda podem trazer efeitos colaterais agregados.


Para evidenciar o parágrafo anterior, existem grupos de recriacionismo grego antigo ou da Roma clássica, ao mesmo tempo em que ocorrem reenactments sobre a Segunda Guerra Mundial ou guerra civil americana. Os primeiros podem até contar com inúmeras fontes escritas e achados arqueológicos, mas sempre deixam alguns detalhes sobre a vida naquele período um pouco enegrecidos. Os outros são de fácil recriação e também contam com diversas referências, mas acabam trazendo influências ideológicas que muitas vezes são confundidas com a prática do reenactment em si e podem gerar constrangimentos e interpretações erradas. Para deixar claro, um reenactor que se vista como um soldado nazista de 1943 pode, involuntariamente, ser chamado de nazista de fato, ainda que seu interesse pelo nazismo seja apenas o de um estudioso e não uma filiação ideológica.

O recriacionismo, então, recria um período de forma voltada ao estudo. É uma prática lúdica, mas com caráter educativo, primeiramente. Portanto não há como haver uma aula rápida ou um curso, uma vez que a própria prática já é um aprendizado constante.


Apesar de tudo o que foi dito, ainda há muito o que falar sobre essa prática, mas para um post introdutório, acho que já é o bastante.

Para ler um pouco mais, há este breve texto na página do grupo Escudo dos Vales, do qual sou membro e fundador.

Até a próxima postagem!

Por Vinícius Ferreira Arruda.