quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A falácia das técnicas de combate com facas na Era Viking.

Boa noite a todos e espero que estejam tendo um excelente início de ano. Porém, como nem tudo são flores, eu vou escrever um texto sobre um assunto que tem me incomodado um pouco recentemente. E um texto que vai incomodar muitos dos mais sensíveis.

Não é incomum que quando começamos a frequentar treinos de um grupo de reenactment mais voltado para o combate, ou mesmo algum que apenas lute eventualmente, nós vemos pessoas treinando com armas mais comuns e mais baratas. É natural que assim seja uma vez que é mais fácil você ver grupos com muitos machados e facas do que espadas. E no caso do reenactment viking virou uma trend os grupos iniciarem os treinos com tocos de madeira imitando saxes e langsaxes/longseaxes justamente pela disponibilidade e segurança da coisa.

Porém, apesar de isso ser um pouco incômodo, não é o maior problema. E conversando com meu amigo F. Breda, líder do grupo de recriacionismo do período Anglo-Saxão Inglês Beorningas, do interior de São Paulo, meio que mapeamos o real perigo disso: quando afirmam que são técnicas de combate com saxes, usadas pelos vikings/saxões e quem mais quer que eles digam nesse momento.

A verdade é que muita gente traz bagagens de diversas artes marciais na hora de desenvolver um sistema de combate com facas. Entre as mais comuns o Systema/Sistema, Kali Silat, Krav Maga, Ninjutsu ou outras usadas principalmente em exercícios militares. E essa bagagem nada tem a ver com como os nórdicos (ou outros povos) encaravam o combate com essas armas.

A aproximação mais racional que podemos pensar de como essas lutas eram feitas é pensar nos manuais italianos ou alemães dos séculos XV ou XVI sobre duelos de adagas, mas eu jajá explico o porque isso seria um erro. De qualquer modo, os mestres do século XVI estão para os "vikings" (vou usar o termo aqui algumas vezes pra localizar você, leitor, no tempo e região da Era Viking, não me referindo apenas aos escandinavos saqueando de navio por aí, ok?) assim como nós estamos para os mestres do século XVI, ou seja, tem uma barreira de pelo menos 500 anos aí. Que por sinal é quase a mesma que divide o final da Era Viking do começo do Período Saxão Britânico e do Volkerwanderung.

Bem, agora vamos fazer um exercício de brainstorm. Na maioria, as lutas modernas de combate com facas tem por finalidade a defesa pessoal, certo? E num geral você acaba aprendendo a reação através da repetição e de um treino com uma metodologia específica. No grosso: você observa um professor/instrutor, você se coloca no lugar do atacante, você faz o golpe várias vezes, você decora, você aprende. Fica automático. E não, eu não estou questionando a validade disso, funciona, nos exércitos funciona, isso é útil porque tem aplicação prática, porque você não toma a decisão, seu corpo já sabe o que fazer antes que você se coloque numa situação de risco. Mas... Qual era a função disso no século X?

"Defesa pessoal, claro!" Não! E por que não? Vamos lá:

Você aprende isso em defesa pessoal no século XXI porque você parte do princípio de que alguém vai te atacar com uma faca na rua. Porque existe em geral uma proibição ou restrição, dependendo do país, ao porte de armas de fogo e então é mais fácil trombar com alguém armado com uma butterfly ou um canivete do que com um revólver, por exemplo. Embora, claro, no Brasil a regra pode ser diferente dependendo do estado. O fato é que você se prepara, no caso de praticar essas artes marciais, pra esse tipo de situação. E não estou falando dos treinos e técnicas pra armas de fogo porque obviamente elas não estavam por aí no período que o blog se propõe a ilustrar.

De qualquer modo, você espera poder ver o seu atacante e você espera estar em uma distância em que seja possível usar as técnicas de combate com facas, seja você a pessoa armada ou o outro. Se você tira esses dois fatores, você pode ter sua faca AK47 que ela não vai fazer efeito nenhum. Meio óbvio.

Agora pense bem nesses últimos dois parágrafos. Aposto que se imaginou andando na rua de madrugada e percebe que tem alguém te seguindo. Ou viu alguém suspeito de longe, ou viu alguém fazendo alguma coisa suspeita e colocou a mão no bolso, onde está seu canivete, ou no caso de um militar no meio da guerra da Síria, você se imaginou ficando sem munição ou enfrentando alguém sem munição ou querendo causar uma baixa oportuna sem revelar sua posição. Ou ainda uma briga de bar ou um sequestro onde alguém dominou o outro com uma faca na garganta. Não sei, podem ter imaginado muita coisa.

Mas nenhuma dessas realidades é a regra pra Era Viking.

Primeiro que você não pensa em cidade da forma como nós as pensamos hoje. Segundo porque fora delas você pode andar com armas muito mais efetivas e que não são difíceis de se arrumar. Terceiro porque você não tinha tempo ou posição social pra fazer o que bem entendesse. E essa terceira é pesada, mas é real.

Vamos lá, imagine um centro comercial. Uma cidade, claro, mas não como as nossas hoje em dia, a menos que estivesse falando de Roma ou Constantinopla e mesmo assim, não. Mas pense em Hedeby em seu apogeu. Ou Birka. Existe um chefe local, um jarl ou mesmo um rei tomando conta do lugar. E ele não quer o lugar saindo do controle e nem quer perder os visitantes com notícias de que o lugar é violento. Porque ele lucra com o comércio ali. Ele vai ter homens armados andando por ali, tipo cena de filme, fazendo rondas, mantendo a ordem, via violência mesmo. E sem facas, vai ter é nego de machados, escudos, cotas de malha provavelmente, talvez espadas e principalmente lanças e arcos. E olha só, não vão andar sozinhos. Então combate de facas contra dois ou mais homens armados com coisas que mantém a distância com certeza não vai funcionar bem.

"Ah, mas você pode chegar por trás e cortar a gargante de um deles antes do outro ter uma reação." Se você é do tipo que adora Assassin's Creed, você pode se perguntar sobre isso e sim, você pode, mas não existe muita técnica necessária pra degolar alguém na surdina. Nem pra dar uns backstabs.

Além disso as cidades, como já falei, não eram como hoje. As pessoas viam as coisas. Não tinha no norte da Europa essa ideia de becos escuros no século X. E a maioria dos vikings não viajava pra Constantinopla toda semana pra precisar tanto assim aprender a se defender em becos, porque se eles iam prum beco com certeza estariam com mais algumas pessoas do lado.

Então a necessidade do combate com saxes em realidades urbanas não existia. Pra que você ensina um cachorro a apertar o botão do elevador se você mora num sítio sem elevador?

Agora em situações em lugares menores. Vilarejos ou estradas.

Numa vila pequena você pode usar um sax pra se defender de animais selvagens. Você não precisa desenvolver uma arte marcial pra isso, porque, né... Mas você pode usar pra impedir ser estuprada pelos homens do chefe local. Que estão armados com outras armas, com armaduras, em maior número, que passaram a vida inteira treinando o uso com essas outras armas e que, caso morram todas nas suas mãos ninjas, vão ser notados e alguém vai te caçar com cães farejadores (bem comuns naquela época) e vão te matar. Significa que acho que as mulheres sozinhas deviam ficar quietas e aceitar? Não, só digo que o mundo era diferente e tinha outras regras em vigor.

Mas você podia usar uma faca pra se defender de outras pessoas, claro, mas num geral elas também não sabiam combate com facas, porque era uma habilidade sem sentido quando podem lutar com rastelos, machados e panelas com água fervendo, então seria como dois militares de mesmo nível em artes marciais lutando. Só que menos aprazível de se ver.

Percebem? Você tinha várias coisas mais ameaçadoras do que facas sempre a mão nesses lugares ou uma faca não faria nenhuma diferença contra outras pessoas, assim como uma espada de uma mão não vai ser muito útil contra um urso emputecido.

Mas pense numa estrada. Um assalto! É, ninguém vai sair de uma estrada com uma faca na mão na calada da noite e anunciar ou falar "perdeu" ou "fica quieto", porque ninguém vai ouvir mesmo. Assaltantes, sobretudo durante a Idade Média, tem por característica básica serem rápidos e desleais. Covarde pode ser uma palavra. Eles ficariam sobre as árvores com arcos e flechas, bloqueariam a estrada com troncos e pedras e só atacariam se estivessem em maior número com certeza de sucesso usando surpresa. Não sei se visualizou a cena, mas um sax não faz muita diferença nesse cenário.

Num navio também não, porque você geralmente vai ter muitos outros elementos ao redor e ainda que só tivessem duas pessoas a bordo, pegar um remo e derrubar o outro seria muito mais inteligente.

E por fim, a batalha!

Pois é, langsaxes provavelmente eram usados em batalha. Você tem um monte de gente grudada se empurrando contra um outro exército, você não consegue mexer muito seu braço e um facão bem pontudo é a melhor coisa que vem na sua mente por baixo do seu escudo. Ou você tem um sax desembainhado na mão do escudo enquanto luta com outra arma na outra mão. Perfeito. Parece funcional? E é!

"Aí, meu, então combate com facas é útil pra reenactors!" Erm... Não vá tão longe assim.

As pessoas treinam duelos de um contra um, armados com nada além de saxes (ou pedaços de madeira) iguais, sem distrações externas. Isso soa como uma batalha pra você? Assista o episódio "A Batalha dos Bastardos" do Game of Thrones pra entender o que é uma batalha. Ou assista Henry V. Ou simplesmente faça uma shieldwall no final de semana com seu grupo e os grupos mais próximos pra você ver que não existe essa coisa de duelo de honra quando você coloca uns vinte marmanjos armados querendo matar uns aos outros. Assista uma final de buhurt no Battle of the Nations pra ter uma noção. Não, amigos, não faz sentido você aplicar golpes de jiu jitsu no meio duma situação onde o amigo do seu oponente pode simplesmente pisar na sua cabeça ou apontar uma lança pra você largar.

Tem um outro detalhe sobre as bainhas dos saxes. Justamente por conta de tudo isso, você não precisava de uma bainha de kydex ou PVC de saque rápido. Uma vez o A. Pessoa do Haglaz comentou sobre a bainha manter o gume pra cima na grande maioria dos saxes e achava isso estranho. O sax nunca foi uma arma de saque rápido. A bainha serve pro transporte, mas se você precisar sacar o sax numa batalha aberta, você morria porque tinham armas muito mais apropriadas pra isso. E se você pretendesse entrar numa batalha onde uma faca de 40cm precisasse ser usada além de uma espada, machado ou lança, você já entraria com ela desembainhada.

Bom, aí alguém me pergunta sobre os manuais de esgrima da Renascença.

Primeiramente eles são da Renascença, quando havia cidades propriamente ditas. Depois eles mostram duelos, que era uma prática comum pra disputas legais. Era como ter um bom advogado, mas ele cortava. Terceiro que eram adagas na maioria das vezes e elas funcionam de uma forma bem diferente do que um sax. Quarto que ambos usam as mesmas armas. E quinto, não esperava que pessoas andassem por aí usando lanças ou rastelos como bastões de caminhada.

Além disso, o mais próximo de um sax seria um dussack/tessak, não uma adaga e mesmo assim, as situações acima mencionadas são as mesmas.

"Então quer dizer que não se usava uma faca enorme como arma?" Bom, eu já disse que se usava e muito e em muitas situações, mas o ponto desse texto é excluir das nossas cabeças os sistemas de combate com facas. Que não cabiam no contexto deles, com escudos, lanças, machados e outras coisas do gênero. Seria o mesmo que você se defender com um estilete gasto com vários gominhos já arrancados. É possível, é funcional, mas é tão variável e não padronizado que você tem que improvisar, porque um sistema estabelecido vai deixar mais buracos do que ele consegue tapar.

Então, parem de dizer que os vikings lutavam com facas como membros de forças especiais, porque eles não faziam isso. E o treino de artes marciais modernas no reenactment é anacrônico.

Mas não estou dizendo que é errado e que tem que parar de fazer, pode ser uma coisa divertida, lúdica, pode ser uma atividade física, você pode treinar com seu grupo pretendendo usar aquilo pro dia a dia (afinal, mesmo sem usar numa luta de recriação, você pode usar na vida aqui fora). Mas não pode é dizer que vikings lutavam Kali Silat e nem acreditar que eles tinham sistemas padronizados de ensino de artes marciais. Isso é bobagem, ingenuidade ou agir de má fé.

Enfim, espero que entendam os pontos aqui expostos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário